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    © 1996-2002, Projecto Vercial.

    José Nogueira Reis

    REFERÊNCIA E COGNIÇÃO

    Por João Branquinho

    http://www.terravista.pt/Ancora/2558

    Capítulo I - Referência e Conteúdo

    Secção 1 - Conteúdo

    1.1 Conteúdo Singular

    1.2 Contexto e Composicionalidade

    1.3 Dois Significados de 'Significado'

    1.4 Tipos e Exemplares

    1.5 Valores Semânticos

    1.6 Proposições

    1.7 Interpretação

    1.8 Complexidade, Vacuidade, e Menção

    1.9 Informação

    1.10 Conteúdo Linguístico e Mental

    1.11 A Relação de Significado

    1.12 Fusão ou Dissociação?

    1.13 Referência Linguística e Mental

    1.14 Estrutura

    1.15 Conteúdo Singular Mental

    Notas

     Um dos propósitos centrais deste capítulo inicial é o de fazer um pouco de geografia conceptual, por assim dizer. Quero dedicar algum tempo a uma identificação, delimitação, e caracterização preliminares de um conjunto saliente de conceitos, problemas, argumentos e posições teóricas na filosofia do significado e da referência. Alguns deles irão desempenhar um papel importante na discussão subsequente.

    Este trabalho de cartografia conceptual o mapeamento de conceitos, problemas e teorias no espaço lógico é um tipo de empreendimento cuja execução pode ser de extrema importância neste e noutros ramos da Filosofia. Com efeito, trata-se de uma disciplina na qual, parcialmente em virtude do seu elevado grau de abstracção e generalidade, a clareza e a precisão no tratamento de problemas e argumentos são características simultaneamente indispensáveis e difíceis de alcançar; e elas exigem, naturalmente, que tenhamos à partida uma ideia suficientemente nítida e distinta acerca daquilo que queremos discutir. Na filosofia do significado e da referência, muito em particular, não é difícil encontrar confusões, imprecisões, indistinções, equívocos, e conflações que urge notar ou dissipar.

    Uma delineação prévia adequada da natureza e dos contornos do conjunto de problemas a investigar, bem como das suas principais interconexões de carácter conceptual e lógico, contribui seguramente para o sucesso de uma explicação filosófica; pelo menos na medida em que essa contribuição assume seguramente a forma mínima de uma condição necessária. Em especial, a assimilação ou a indistinção de problemas que deveriam ser liminarmente distinguidos pode prejudicar de forma substancial a discussão e a avaliação de propostas avançadas com vista à sua solução. De facto, se há na realidade problemas filosóficos distintos e logicamente independentes1 um do outro onde à primeira vista havia um único problema, então onde à primeira vista havia uma proposta implausível de solução do alegado problema pode bem haver na realidade uma proposta plausível de solução de um dos problemas. Uma teoria inadequada para lidar com um problema pode bem ser adequada para lidar com um problema logicamente independente daquele; e iremos encontrar em breve alguns exemplos deste fenómeno na área da filosofia do significado e da referência. Conversamente, a preservação de uma distinção liminar entre problemas que são afinal assimiláveis pode igualmente ser prejudicial para a discussão, desta vez por razões de economia conceptual. Trata-se daquilo a que se costuma chamar uma distinção à qual não corresponde qualquer diferença. Com efeito, se há de facto um único problema, ou problemas logica ou conceptualmente dependentes, onde à primeira vista havia problemas distintos, então onde à primeira vista havia propostas separadamente plausíveis ou implausíveis de solução para cada um dos problemas, pode bem haver de facto uma proposta uniforme, plausível ou não, de solução.

    Procedo em seguida a uma exploração do território conceptual no qual se situam os tópicos a discutir. Aquilo que se quer obter é uma visão panorâmica da área. É dada uma ideia informal, propedêutica, e sinóptica da natureza dos problemas tratados, dos conceitos cruciais envolvidos na sua formulação, e das principais teorias disponíveis ou meramente possíveis acerca deles. São igualmente introduzidas algumas suposições genéricas relevantes, algumas das quais são disputáveis precisam de ser suportadas por alguma argumentação, a qual é aduzida à medida que é necessária. E são dissipados alguns equívocos e incompreensões resultantes de formulações imprecisas ou ambíguas dos problemas sob consideração. A exposição transcende ocasionalmente o nível puramente descritivo; de facto, para além da adopção e defesa de alguns princípios gerais que estão longe de não ser polémicos, é também introduzido de forma preliminar o ponto de vista genérico defendido ao longo do ensaio e caracterizado o sentido global da argumentação aduzida a seu favor.

    Quero separar um conjunto de quatro problemas nucleares da filosofia do significado e da referência, entre os quais existem seguramente conexões estreitas2 e os quais, por isso, são susceptíveis de ser confundidos. Tratarei igualmente de algumas das ramificações mais importantes de alguns desses problemas. Nas quatro secções seguintes são caracterizados, pela ordem abaixo indicada, os problemas em questão. É conveniente introduzir rótulos, pelo que usarei para o efeito as seguintes designações: (1) Problema do Conteúdo Linguístico; (2) Problema do Conteúdo Mental; (3) Problema da Referência Linguística; e (4) Problema da Referência Mental. Uma discussão detalhada destes tópicos, especialmente dos primeiros dois, e dos diversos pontos de vista conceptualmente admissíveis acerca deles, bem como a introdução de certos refinamentos e qualificações a fazer relativamente às formulações dadas e às conexões estabelecidas, são coisas que terão de ficar para mais tarde.

     

    SECÇÃO 1 - CONTEÚDO

    1.1 Conteúdo Singular

    Começo pelos problemas (1) e (2) acima listados e com o tópico do conteúdo, linguístico e mental. Este é o tópico do qual o presente ensaio se ocupa primariamente, pelo que a caracterização dada é mais extensa do que a subsequentemente oferecida para os outros tópicos.

    A ênfase é colocada naquela variedade de conteúdo conhecida como conteúdo singular, uma variedade susceptível de gerar um elevado nível de controvérsia filosófica. Numa formulação inicial, e apesar de a propria noção não estar inteiramente livre de polémica, um conteúdo de uma frase, de uma afirmação, de uma suposição, de uma crença, de um juízo, etc. é singular no sentido em que, de algum modo, se refere a, ou é acerca de, um e um só objecto específico ou indivíduo.3 Cada um dos habituais itens tridimensionais que povoam o nosso quotidiano pessoas, artefactos, planetas, cidades, etc. é um caso típico daquilo que queremos dizer quando falamos aqui de indivíduos. Conteúdos singulares opõem-se deste modo a conteúdos gerais, conteúdos que não são acerca de nenhum objecto específico ou indivíduo em particular. Assim, o conteúdo de uma frase como A minha vizinha é anoréxica é intuitivamente classificável como singular, e o de uma frase como Muitas jovens de 18 anos são anoréxicas como geral; e o mesmo se pode dizer dos conteúdos de crenças ou juízos linguisticamente manifestáveis através do emprego das frases em questão. Note-se que, na caracterização dada, o conteúdo de uma frase como Muitas jovens de 18 anos são como a minha vizinha é classificável como singular, e não como um conteúdo híbrido ou misto.

    Uma das questões que desejo isolar como central para a nossa discussão subsequente é a seguinte:4

    (Q) Que género de função deve ser atribuída a uma expressão referencial singular, designador ou termo singular5 por exemplo, um nome próprio como Vénus, uma expressão demonstrativa singular como Aquele planeta, uma descrição definida singular como O segundo planeta do sistema solar na fixação ou determinação do conteúdo de uma elocução,6 ou de uma inscrição, 6 de uma frase arbitrária em que a expressão possa ocorrer?

    Assume-se, pelo menos para os nossos fins taxonómicos imediatos, que expressões referenciais singulares das categorias indicadas são dispositivos linguísticos que permitem, pelo menos em alguns usos, exprimir conteúdos singulares no sentido acima mencionado.

    É conveniente introduzir agora algumas noções, distinções, e princípios básicos cujo propósito é o de nos auxiliarem a adquirir uma ideia mais clara daquilo que se tem em mente com a questão (Q).

    Para começar, em pelo menos um significado da palavra significado,7 colocar a questão (Q) é equivalente a perguntar pela contribuição de uma expressão referencial singular para a determinação do significado de uma elocução, ou de uma inscrição, de uma frase que a contenha. Entende-se por significado ou conteúdo de uma elocução/inscrição de uma frase declarativa num determinado contexto aquilo que é dito ou afirmado através da elocução/inscrição da frase no contexto em questão.8 Como, por vezes, mais do que uma coisa é assim dita ou afirmada, aquilo que se tem em mente quando se fala no conteúdo de uma elocução/inscrição é, naturalmente, aquilo que é nela literalmente dito ou afirmado. E entende-se aqui por contexto de uma elocução/inscrição de uma frase um determinado conjunto de circunstâncias extra-linguísticas que rodeiam a elocução/inscrição da frase. Tais circunstâncias incluem normalmente, e no mínimo, os seguintes parâmetros: o agente da elocução/inscrição (o falante ou locutor); o tempo, ou o intervalo de tempo, em que a elocução/inscrição se situa; o local da elocução/inscrição; a audiência da elocução/inscrição; e, caso queiramos usar o conveniente aparato da semântica de mundos possíveis, o mundo possível da elocução/inscrição (o qual é, por defeito, o mundo actual ou real). É bom reparar que um contexto neste sentido se deve assim distinguir daquilo a que se costuma chamar o contexto linguístico de uma palavra ou de uma frase, ou seja, o segmento de discurso que rodeia a palavra ou a frase em questão. Trata-se daquilo que se tem em mente quando, por exemplo, se diz que a frase Deus existe ocorre num contexto intensional ao ocorrer numa frase como O Papa pensa que Deus existe; ou quando, por exemplo, se diz que a palavra sueco ocorre no contexto de uma frase genérica ao ocorrer na frase Os suecos são altos.

    1.2 Contexto e Composicionalidade

    Naturalmente, supõe-se em (Q) que o significado da expressão referencial singular ela própria é completamente especificado ao ser especificada a contribuição sistemática da expressão para o significado, relativamente a contextos de uso dados, de frases em que ela possa ocorrer. Neste sentido, a noção tomada como primária é a noção de significado ou conteúdo de uma frase, ou melhor, de uma frase enquanto dita, escrita, etc., num dado contexto; e a noção de significado ou conteúdo de uma palavra, ou de uma expressão subfrásica em geral, é vista como uma noção subordinada ou parasitária, no sentido de uma noção necessariamente caracterizável em termos daquela noção.

    De notar que só superficialmente existe um conflito entre, de um lado, esta ideia, a ideia de que o significado de uma palavra ou, em geral, de uma unidade subfrásica é inteiramente dado na sua contribuição para o significado de uma frase na qual ocorra, e, do outro lado, o princípio, igualmente razoável, segundo o qual o significado frásico é composicional. De uma forma aproximada, este último princípio estabelece que o significado de uma frase é inteiramente determinado pelo significado das palavras, ou unidades subfrásicas, que a compõem e pela sintaxe da frase. Por outras palavras, o princípio estabelece que qualquer alteração no significado de uma frase dada é gerada por uma das seguintes duas coisas (ou ambas): (i) uma alteração produzida ao nível do significado de pelo menos uma das expressões constituintes é este aspecto que está operativo quando distinguimos entre os significados de frases como Cavaco insultou Guterres e berrou com Vitorino e Cavaco criticou Guterres e berrou com Vitorino; (ii) uma alteração produzida ao nível do modo de combinação dessas expressões na frase é este aspecto que está operativo quando distinguimos entre os significados de frases como Cavaco insultou Guterres e Guterres insultou Cavaco.

    A primeira ideia acima mencionada pode ser considerada como uma versão do famoso Princípio do Contexto de Frege. Este é a tese de que uma palavra ou expressão só tem significado no contexto9 de uma frase. Por outras palavras, trata-se da tese de que o significado frásico é, conceptual e metodologicamente, prioritário.10 A pretensão subjacente, a qual parece ser bastante razoável, é a de que as frases são, numa linguagem, as unidades mínimas de comunicação: é através delas, e só através delas, que algo de completo pode ser comunicado através da linguagem, que um acto linguístico total pode ser executado.11

    Quanto à segunda ideia acima mencionada, o Princípio da Composicionalidade do significado frásico, ela justifica-se entre outras coisas com base no facto de tornar possível a explicação de propriedades reconhecidamente importantes de diversos sistemas linguísticos, em especial das línguas naturais. Entre essas propriedades estão notoriamente as seguintes duas: (i) a propriedade da infinitude, ou seja, o facto de as línguas naturais conterem um número potencialmente infinito de frases dotadas de significado. Trata-se aqui de frases no sentido de frases-tipo, pois a propriedade da infinitude é trivialmente satisfeita no caso de frases-espécime (para cada frase-tipo, há infinitamente muitas frases-espécime que a exemplificam);12 (ii) a propriedade da criatividade ou novidade, ou seja, o facto de um falante competente de uma língua natural estar invariavelmente em posição de compreender (apreender o significado) ou produzir com compreensão, numa dada ocasião, uma frase nunca antes por ele proferida, vista, ou ouvida. Estas duas propriedades são frequentemente confundidas. Todavia, há que distingui-las, pela simples razão de que, apesar de linguagens infinitas não poderem deixar de ser criativas, linguagens finitas podem bem ser criativas.13 Acerca dessas propriedades bem como acerca de outras propriedades da mesma família, como por exemplo a sistematicidade14 a pretensão subjacente é a de que o princípio da composicionalidade nos dá a melhor explicação possível da sua posse pelos sistemas linguísticos que as possuem.

    Regressando à alegada tensão entre as duas ideias, os princípios do Contexto e da Composicionalidade, a observação que deve ser feita a esse respeito é do seguinte teor: na pior das hipóteses, se os princípios dessem de facto origem a um círculo de ideias, o que não é de todo claro, então seria certamente um círculo informativo ou virtuoso. Não parece assim haver qualquer obstáculo à sua adopção conjunta. Por outro lado, embora os princípios tenham sido aqui e ali objecto de crítica (sobretudo o da composicionalidade)15, tomo a evidência separadamente existente a favor de cada um deles como recomendando que eles sejam simplesmente assumidos na discussão subsequente.

    1.3 Dois Significados de Significado

    Convém distinguir desde já a noção particular de significado que se tem vindo a empregar, a qual para evitar equívocos podemos provisoriamente designar por significado2, de uma outra noção, talvez mais corrente e frequente na literatura e no idioma comum, a qual podemos provisoriamente designar por significado1.

    O significado1 de uma expressão linguística é, aproximadamente, o seu significado de dicionário. É aquilo que se tem em mente quando se emprega, por exemplo no ensino primário e preparatório, o termo significado em expressões como caderno de significados. Cada página de um caderno de significados é tipicamente composta por duas colunas, estando na coluna da esquerda as palavras novas (as palavras a explicar), e.g., cavaquear, e na coluna à direita palavras que dão o significado daquelas, e.g., conversar informalmente. No caso de frases, e de acordo com uma noção estrita de paráfrase, o significado1 de uma frase, e.g., O conflito entre eles terminou anteontem, é especificado através da introdução de uma paráfrase adequada para a frase, e.g., A zanga deles acabou há dois dias. O significado1 é também aquilo que se tem em mente quando se caracteriza determinadas propriedades semânticas de palavras ou de frases, ou determinadas relações semânticas entre palavras ou entre frases, como a propriedade da ambiguidade, a relação de sinonímia, e outras. A sinonímia, por exemplo, é caracterizada como consistindo na identidade de significado; e a ambiguidade como consistindo na posse de mais do que um significado.

    Obviamente, as duas noções de significado têm aplicações coincidentes em muitos casos. O significado de dicionário de uma expressão e.g., de palavras como vermelho ou oftalmologista converge muitas vezes com o seu conteúdo relativamente a contextos arbitrários de uso. Mas, como a seguir se mostra, a extensão das noções pode divergir; e logo elas devem ser liminarmente distinguidas.

    O caso de frases onde ocorrem palavras indexicais, palavras fortemente sensíveis às circunstâncias extra-linguísticas que caracterizam o seu emprego, ilustra à perfeição a divergência das duas noções. Assim, por um lado, a expressões com o mesmo significado1 podem corresponder diferentes significados2. Tome-se, por exemplo, uma elocução produzida por mim da frase Eu sou Luís de Camões em certas circunstâncias (algo bizarras); e tome-se uma elocução produzida por Luís de Camões da frase Eu sou Luís de Camões em certas circunstâncias (nada bizarras). Plausivelmente, há aqui dois significados2: aquilo que é dito varia de elocução para elocução, pela simples razão de que se trata de uma falsidade (acerca de mim) no primeiro caso e de uma verdade (acerca de Camões) no segundo; mas há apenas um significado1, o qual é constante da primeira para a segunda elocução e o qual pode ser aproximadamente dado através da paráfrase O falante é Luís de Camões (supõe-se, obviamente, que não há qualquer ambiguidade no material restante, não-indexical, da frase). Por outro lado, a expressões com o mesmo significado2 podem corresponder diferentes significados1. Tome-se, por exemplo, uma elocução produzida hoje por mim da frase Hoje é sexta-feira em certas circunstâncias; e tome-se uma elocução produzida amanhã por mim da frase Ontem foi sexta-feira em certas circunstâncias. Plausivelmente, há aqui dois significados1: as palavras hoje e ontem diferem certamente quanto a essa noção de significado: o primeiro é dado em algo como O dia corrente; o segundo é dado em algo como O dia imediatamente precedente. Mas há apenas um significado2: aquilo que é (literalmente) dito ou afirmado permanece constante da primeira para a segunda elocução (ou assim o podemos supor para os nossos propósitos imediatos).

    Para além disso, e como teremos a oportunidade de ver, de acordo com um certo espectro de teorias do significado2 a divergência das noções não se restringe ao caso indexical. Determinadas expressões e frases não-indexicais sinónimas, idênticas quanto ao significado1, podem vir a ser associadas nessas teorias a diferentes significados2 com respeito a determinados contextos de uso.

    1.4 Tipos e Exemplares

    Podemos instrutivamente representar a diferença estabelecida entre as duas noções de significado como resultando essencialmente de uma diferença nos géneros de objecto aos quais elas primariamente se aplicam. Assim, enquanto o significado1 é uma propriedade de tipos ou universais linguísticos, o significado2 é uma propriedade de exemplares, espécimes ou particulares linguísticos. A distinção entre estes dois géneros de objecto deixa-se ilustrar de uma forma simples através da observação de que, numa frase como O gato do Francisco comeu o gato do pai do Francisco, há onze palavras-espécime, mas apenas seis palavras-tipo. É útil reparar que os dispositivos presentes nos habituais programas de processamento de texto contam palavras-exemplar, e não palavras-tipo; quando numa frase como a supra mencionada, o dispositivo calcula o número de palavras, aquilo que é contado são palavras-exemplar..

    A noção de significado1 aplica-se primariamente às expressões linguísticas elas próprias, ou seja, às expressões linguísticas qua expressões-tipo (palavras-tipo, frases-tipo, etc.). Tipos linguísticos são manifestamente objectos abstractos, objectos insusceptíveis de uma localização no espaço ou de uma datação; e são também, talvez de uma forma mais controversa, objectos universais, objectos repetíveis ou exemplificáveis. Um tipo linguístico é algo que se repete indefinidamente em, ou é exemplificado indefinidamente por, cada uma das suas realizações físicas, as quais são elocuções ou inscrições particulares (ou, se preferirmos, os resultados materiais de elocuções ou inscrições). Deste modo, quando se diz, por exemplo, que as palavras vermelho e encarnado são sinónimas, pelo menos relativamente ao segmento temporal corrente da língua portuguesa, aquilo que se tem em mente é evidentemente uma relação entre palavras-tipo. Em contraste com isto, a noção de significado2 aplica-se primariamente a usos específicos elocuções ou inscrições particulares de expressões linguísticas em determinadas circunstâncias; ou, para sermos mais precisos, a noção aplica-se sobretudo aos resultados materiais dessas elocuções ou inscrições.16 Por outras palavras, o significado2 é uma propriedade de expressões linguísticas qua expressões-exemplar (palavras-exemplar, frases-exemplar). Em contraste com tipos linguísticos, exemplares linguísticos sequências específicas de sons ou de marcas no papel são manifestamente objectos concretos, objectos localizáveis no espaço e datáveis no tempo; e são, também manifestamente, particulares: objectos irrepetíveis ou não-exemplificáveis.

    Se quisermos optar por uma concepção mais austera de tipos linguísticos, uma concepção na qual eles não sejam universais, cada tipo de expressão pode ser sempre visto como uma determinada classe17 de expressões-exemplar, sendo a semelhança tipográfica ou fonológica o critério habitualmente empregue para agrupar exemplares linguísticos dados no interior da mesma classe ou tipo. Todavia, o ganho em austeridade ontológica é aparente. Basta notar que, em virtude de incluirem necessariamente, não apenas elocuções/inscrições que de facto foram produzidas ou que virão a sê-lo, mas também elocuções/inscrições que de facto nunca foram produzidas mas poderiam ter sido produzidas e elocuções/inscrições que de facto não virão a ser produzidas mas poderiam vir a ser produzidas, os tipos linguísticos assim concebidos são classes infinitas de objectos entre os quais se contam muitos objectos meramente possíveis ou possibilia; com efeito, entre eles estão muitas elocuções possíveis mas não actualizadas, como é o caso daquela que eu poderia ter feito se não me tivesse calado numa certa ocasião durante uma certa reunião.

    O facto de as nossas duas noções de significado se aplicarem a objectos de categorias diferentes explica porque é que as noções não são em geral co-extensionais, porque é que um significado1 pode estar associado a dois significados2 e um significado2 a dois significados1. Há, no entanto, uma conexão natural entre as duas noções, pelo menos se assumirmos uma determinada construção razoável da noção intuitiva de significado1. Com efeito, suponhamos que identificamos o significado1 de uma expressão linguística i.e., o significado de um tipo linguístico com uma função ou processo que faz corresponder, a cada contexto extra-linguístico admissível de uso da expressão i.e., a cada exemplar daquele tipo tomado num contexto o significado2 ou o conteúdo da expressão no contexto. Por outras palavras, suponhamos que significados1 são vistos como funções unárias de contextos para significados2. Então a conexão que se estabelece entre as duas noções é prontamente identificável de uma forma clara. O significado1 de uma expressão determina, no sentido funcional do termo, o seu significado2; isto quer dizer, basicamente, que o significado1 de uma expressão faz corresponder a cada contexto um e um só significado2 para a expressão.

    Este género de relação capta a ideia correcta de que o significado2 que uma expressão tem num dado contexto de uso é algo que é de algum modo herdado do significado1 da expressão, no sentido de ser uma propriedade que um exemplar tem num contexto em virtude de pertencer a um determinado tipo linguístico, dotado de um determinado significado1. No caso de palavras ou frases não-indexicais, como talvez vermelho e A neve é branca, o significado1 é presumivelmente uma função constante no seguinte sentido: a cada contexto de uso da expressão, a função faz invariavelmente corresponder o mesmo significado2. No caso de palavras e frases indexicais, como Eu e Agora está a nevar, o seu significado1 é uma função variável no seguinte sentido: a diferentes contextos de uso da expressão, a função faz possivelmente corresponder significados2 diferentes.

    1.5 Valores Semânticos

    Feitas estas clarificações, retomemos a nossa questão (Q) acerca do conteúdo singular. E formulemo-la agora em termos da noção, desejavelmente neutral e útil para propósitos futuros, de valor semântico de uma expressão referencial singular com respeito a um contexto de uso.18 Por valor semântico de uma expressão referencial singular num contexto entende-se simplesmente a contribuição da expressão para a determinação do conteúdo, ou do significado,19 de uma elocução/inscrição de uma frase que a contenha no contexto.

    Assim, em geral, podemos reformular o nosso problema como sendo um problema acerca do valor semântico a atribuir a expressões referenciais singulares. Todavia, observe-se que, adequadamente expresso, o problema é, pelo menos primariamente, um problema relativo ao tipo de valor semântico (conteúdo, significado) a atribuir a todas as expressões no interior de uma categoria dada de expressões linguísticas. Por outras palavras, o problema é intencionado como excluindo à partida a possibilidade de a expressões pertencentes à mesma categoria corresponderem valores semânticos de tipos diferentes objectos de categorias distintas, caso valores semânticos sejam em geral identificados com objectos (o que não é de todo obrigatório). Isto é imediatamente evidente caso individualizemos, como é frequente fazer-se, certas categorias de expressões linguísticas, como a categoria de termos singulares, por meio de considerações de natureza parcialmente semântica; se dissermos, por exemplo, que termos singulares são aquelas expressões que são tipicamente usadas com o propósito de seleccionar ou destacar um e um só objecto específico.

    Assim, ilustrando a observação geral acima feita, podemos querer defender a ideia de que o valor semântico de uma frase declarativa é uma função que projecta mundos possíveis em extensões; tais extensões são, no caso de frases declarativas, valores de verdade. Se o fizermos, queremos naturalmente ser entendidos no sentido de estarmos a proceder a uma atribuição genérica de um tipo de valor semântico (funções dessa natureza) a um tipo de expressão (frases declarativas). E podemos querer defender a ideia associada de que o valor semântico de um termo singular é uma função que projecta mundos possíveis em extensões, sendo aqui tais extensões os objectos referidos pelos termos (se existirem). De novo, se o fizermos, queremos naturalmente ser entendidos no sentido de estarmos a proceder a uma atribuição genérica de um tipo de valor semântico (funções dessa natureza) a um tipo de expressão (termos singulares).

    Por outro lado, embora a nossa atenção incida sobretudo sobre termos singulares, é útil reparar que o mesmo género de questão acerca de valores semânticos se pode colocar relativamente a outras categorias de expressões, em especial à categoria de termos gerais ou predicados monádicos; numa primeira formulação, estes são palavras ou expressões como, por exemplo, voa, é vermelho, e mamífero as quais podem aplicar-se a, ou ser satisfeitas por, cada um dos objectos específicos ou indivíduos de entre uma dada multiplicidade de objectos específicos ou indivíduos. Podemos introduzir em relação a estas expressões o seguinte problema geral, uma resposta adequada ao qual deve ser de algum modo harmonizada, por razões óbvias que têm a ver com a composicionalidade do valor semântico, com a resposta proporcionada para o problema análogo relativo a expressões referenciais singulares.

    (Q)* Que género de função deve ser atribuída a um termo geral ou predicado monádico por exemplo, um substantivo comum como mamífero, um grupo verbal como come ostras, um adjectivo como vermelho na fixação do conteúdo (significado) de uma elocução/inscrição, num dado contexto, de uma frase em que a expressão em questão possa ocorrer?

    Do mesmo modo, a pergunta deve ser entendida no sentido de uma identificação de um tipo de valor semântico que seja adequado para toda a categoria de termos gerais. Naturalmente, dada uma identificação prévia de um tipo de valor semântico como correspondendo a uma determinada categoria de expressões, é possível deduzir de tal identificação tomada em conjunção com certa informação adicional de carácter parcialmente empírico uma identificação do valor semântico específico a atribuir a cada uma das expressões particulares na categoria (tomada relativamente a um dado contexto de emprego). Assim, por exemplo, se os valores semânticos de predicados monádicos forem em geral concebidos como sendo as propriedades monádicas ou os atributos associados aos predicados, então o valor semântico de um predicado como é vermelho num contexto típico de uso será naturalmente identificável como sendo a propriedade de ser vermelho ou o atributo da Vermelhidão (considerando como dado o facto de que um uso desse predicado português num contexto exprime tipicamente essa propriedade).

    1.6 Proposições

    Questões do mesmo teor relativas ao valor semântico podem ainda ser formuladas com respeito a outros géneros de unidades subfrásicas, por exemplo predicados diádicos como admira e expressões de quantificação como alguns répteis. Como caso-limite, o problema põe-se igualmente como aliás o fizemos anteriormente em relação à categoria de frases ela própria, na medida em que podemos querer determinar qual o tipo de valor semântico (conteúdo, significado) que deve ser em geral atribuído a frases (condideradas em contextos admissíveis de uso).

    A este respeito, é habitual utilizar o termo proposição para descrever, de forma genérica e teoricamente não muito comprometida, o tipo de valor semântico atribuível a frases; assim, se adoptarmos provisoriamente a sugestão acima aludida de identificar os valores semânticos de frases com funções de mundos para valores de verdade, então obtemos a tese característica da semântica de mundos possíveis, a tese segundo a qual proposições são conjuntos de mundos possíveis. De novo, se em geral tais funções são os valores semânticos de frases, então torna-se possível, nessa base e com a ajuda de alguma informação empírica adicional, determinar o valor semântico específico, relativamente a um contexto, de uma frase (ou elocução) particular. Por exemplo, torna-se possível determinar o valor semântico específico da frase Aristóteles é um filósofo num contexto como sendo o conjunto de todos os mundos possíveis nos quais Aristóteles existe e é um filósofo. Para isso, é preciso dispor de algo como a informação de que aquela frase portuguesa é verdadeira num mundo possível se, e só se, a pessoa referida pelo nome Aristóteles (i.e., Aristóteles) existe aí e é um filósofo aí; e, como dito anteriormente, este género de informação é de natureza parcialmente factual (basta reparar, por exemplo, que a informação que o nome Aristóteles designa Aristóteles, da qual se deduz a informação que há algo designado pelo nome, é informação de carácter parcialmente empírico).

    Proposições (significados frásicos, valores semânticos de frases) têm plausivelmente a propriedade de determinar em geral as suas próprias condições de verdade, no sentido de fixarem conjuntos de situações actuais ou meramente contrafactuais cuja verificação é suficiente e necessária para as proposições serem verdadeiras. De facto, dada uma especificação de uma proposição qualquer, é possível dela extrair uma especificação das condições sob as quais ela é verdadeira; dada a proposição que Teeteto voa, por exemplo, estão dadas as suas condições de verdade, ou seja, a circunstância de que essa proposição é verdadeira com respeito a um mundo possível se, e somente se, Teeteto existe nesse mundo e a propriedade de voar é dele predicável no mundo em questão.

    Consequentemente, podemos equivalentemente caracterizar o problema do valor semântico de expressões referenciais singulares como sendo o problema de especificar a contribuição de cada uma dessas expressões para fixar as condições de verdade da proposição expressa, relativamente a um dado contexto, por uma elocução/inscrição de uma frase que a contenha.

    Segundo alguns pontos de vista de natureza extensionalista, a proposição literalmente contida numa elocução de uma frase declarativa num contexto é simplesmente identificada com as condições de verdade atribuíveis à frase no contexto. Uma elocução da frase A Claudia Schiffer é alta tem as mesmas condições de verdade do que uma elocução da frase Se 2+2 = 4, então a Claudia Schiffer é alta: ambas são tornadas verdadeiras por aquelas, e só por aquelas, situações nas quais a Schiffer existe e é alta. Logo, de acordo com tais ponto de vista, a mesma proposição seria expressa por ambas as elocuções. Todavia, podemos querer distinguir entre as proposições expressas pelas elocuções em questão, por exemplo com base em considerações relativas à estrutura interna das proposições: uma é uma proposição condicional, a outra é uma predicação simples. Ora, é razoável não comprometer à partida a nossa discussão com qualquer ponto de vista particular acerca do conteúdo proposicional. Por isso, é razoável não bloquear à partida a possibilidade de as noções de proposição e condições de verdade não serem co-extensionais. É assim razoável contemplar (para dizer o mínimo) uma noção de proposição que seja de alguma maneira maís fina ou robusta do que aquela que é empregue nas posições estritamente referencialistas mencionadas, uma noção na qual seja possível a proposições diferentes (e.g., as acima referidas) corresponderem as mesmas condições de verdade. Em todo o caso, quer se opte pela identificação quer não, é preservada a ideia de que uma proposição determina certas condições de verdade (se estas forem a mesma coisa, então a determinação é trivial).

    1.7 Interpretação

    Tal como descrito através do conjunto precedente de observações, o tópico do conteúdo singular é um tópico de importância para a semântica, e, em especial, para a chamada semântica descritiva.20

    Com efeito, a tarefa básica da semântica descritiva é muitas vezes caracterizada como consistindo na interpretação de um dado sistema linguístico, em que este é tipicamente uma língua natural; e aquilo que temos vindo a dizer pode ser facilmente reformulado através do recurso a uma determinada noção semi-técnica de interpretação, cujos traços gerais são a seguir mencionados.

    Por uma interpretação de uma linguagem entende-se essencialmente uma atribuição de significados às frases dessa linguagem, ou melhor, a usos particulares (elocuções ou inscrições) de frases dessa linguagem. Essa atribuição deve ser composicional, necessariamente baseada numa correspondente atribuição de significados às diversas unidades subfrásicas intervenientes; pois, como já foi referido, é razoável tomar o significado de uma frase como obedecendo a um princípio de composicionalidade funcional, ou seja, como sendo inteiramente determinado pelos valores semânticos das diversas expressões constituintes e pela sintaxe da frase. Por outro lado, a atribuição de um significado a uma frase, ou a uma expressão subfrásica, é muitas vezes descrita pelos semanticistas como consistindo na especificação de uma função que faz corresponder, a cada contexto admissível de uso da frase, ou da expressão, o seu conteúdo ou valor semântico com respeito ao contexto em questão; ou seja, aquilo que é (literalmente) dito ou afirmado por meio do emprego da frase no contexto, ou aquilo que é para tal contribuído pela expressão subfrásica. Por outras palavras, uma interpretação neste sentido não é mais nada do que uma especificação daquilo a que chamámos um significado1, ou seja, uma especificação de uma determinada função de contextos para conteúdos, um determinado conjunto de pares ordenados de contextos e conteúdos (significados2).

    Por conseguinte, o tópico do valor semântico, o tópico da identificação de conteúdos apropriados para expressões e frases tomadas em contextos de uso, é sem dúvida relevante para a semântica; ou, pelo menos, para aquele segmento significativo da semântica, a semântica descritiva, cuja tarefa consiste em proporcionar interpretações no sentido acima indicado.

    1.8 Complexidade, Vacuidade, e Menção

    Vamos agora introduzir um conjunto de ênfases e restricções importantes relativas aos dispositivos linguísticos a considerar do ponto de vista do tópico do conteúdo linguístico tal como expresso na questão (Q). Há basicamente três observações a fazer.

    (1) Por razões de carácter simultaneamente teórico e dialéctico, queremos dar uma atenção especial a expressões referenciais singulares que sejam logicamente simples, no sentido de expressões logicamente não-complexas. Estas são expressões que não possuem qualquer estrutura interna que seja relevante para fins de especificação de um objecto como referência. A qualificação da simplicidade em questão como lógica é necessária pelas seguintes razões. Primeiro, há termos singulares sintacticamente complexos cuja complexidade não é, no entanto, lógica; a expressão A Estrela da Manhã é um exemplo disso: se a complexidade fosse lógica, a expressão não poderia ser de todo usada para designar o planeta Vénus. Segundo, há termos singulares logicamente complexos cuja complexidade não é, no entanto, sintáctica; o nome Deus, tal como usado na teologia ocidental, pode ser um exemplo disso, se assumirmos que se trata de uma simples abreviatura de uma descrição complexa que incorpore os atributos divinos tradicionais (e.g., uma descrição como O ser ommipotente, omnisciente, do qual nada de mais perfeito pode ser concebido, ).

    As razões de carácter dialéctico são basicamente as de que, em algum contraste com a semântica descritiva para termos singulares complexos, a semântica descritiva para termos singulares simples é uma área onde o nível de controvérsia filosófica tem sido extremamente elevado, onde há muito pouco (ou mesmo nenhum) consenso, e onde é importante resolver a disputa e chegar a uma posição satisfatória. Para se fazer uma ideia imediata do grau de polémica atingido na área, basta dizer que não há sequer um consenso acera de uma coisa aparentemente tão simples como o valor semântico a atribuir a uma predicação básica como Rover é um cão. As razões de carácter teórico são basicamente as de que os problemas filosóficos mais profundos da semântica descritiva para designadores complexos parecem deixar-se reduzir, pelo menos se nos concentrarmos no caso de designadores descritivos, ao problema do valor semântico a atribuir a predicados logicamente simples; e este, bem como os problemas de determinação da referência que lhe estão associados, é um problema complicado que é apenas tocado ao de leve ao longo do presente ensaio.

    (2) Por outro lado, queremos focar a nossa atenção no caso de expressões referenciais singulares não-vazias ou não-vácuas, no sentido de expressões invariavelmente tomadas como empregues em contextos nos quais o propósito de designar algo não seja frustrado. Com efeito, a consideração de termos vácuos ou vazios introduz uma série de dificuldades específicas bem conhecidas, as quais transcendem o âmbito intencionado para este ensaio. A complexidade do tópico do conteúdo singular já é suficientemente grande com respeito a casos em que a condição de referência ou designação é satisfeita, de modo que só en passant é que consideraremos casos em que a condição não é satisfeita.

    Assim, em relação ao primeiro tipo de ênfase, a intensidade da nossa atenção será maior com respeito a expressões referenciais singulares como Roma, Mário Soares, e A Estrela da Manhã; e será consideravelmente menor com respeito a expressões referenciais singulares como A queda do império romano, O Presidente da Républica Portuguesa em 1996, e O homem que matou Liberty Vallance.21 Em relação ao segundo tipo de ênfase, a intensidade da nossa atenção será maior com respeito a expressões referenciais singulares como Péricles, A capital de Portugal, e O número par primo; e será consideravelmente menor com respeito a expressões referenciais como O maior número par, Ulisses, e Tróia (considerando estes dois últimos nomes próprios como empregues no contexto da mitologia grega).22

    (3) Finalmente, limitar-nos-emos a considerar ocorrências usadas, em contraste com ocorrências mencionadas, de expressões referenciais singulares em frases. A distinção entre uso e menção é relativamente clara e um exemplo simples é suficiente para a introduzir. Para mencionar uma pessoa, digamos Mário Soares, e dizer algo acerca dela, digamos que é um animal político, é usada uma expressão referencial singular que a designe, por exemplo o nome próprio pessoal Mário Soares, numa frase como Mário Soares é um animal político. Para mencionar uma palavra, digamos gato, e dizer algo acerca dela, digamos que é uma palavra portuguesa que se aplica a gatos e só a gatos, é usada uma expressão referencial singular que a designe, por exemplo uma citação da palavra, numa frase como «gato» aplica-se a um animal quando e só quando se trata de um gato. Note-se que, na última frase, gato tem duas ocorrências, sendo a primeira uma ocorrência mencionada e a segunda uma ocorrência usada; quanto à citação, gato, ela tem apenas uma ocorrência, usada. Na frase O Presidente da Républica Portuguesa em 1994 chamava-se «Mário Soares», uma citação do nome Mário Soares é usada, e, assim, o nome Mário Soares é mencionado; também se pode dizer que o indivíduo Mário Soares é igualmente mencionado na frase, mas (na melhor das hipóteses) através da descrição definida O Presidente da Républica Portuguesa em 1994, não através do nome Mário Soares. Em suma, estaremos interessados em certas propriedades semânticas de um nome próprio como Mário Soares tal como ocorre em frases como Mário Soares é fixe e Cavaco Silva acredita que Mário Soares o quer tramar, mas não em ocorrências do nome em frases como «Mário Soares» contém duas ocorrências da letra r e «Mário Soares» leva um acento agudo no primeiro a.23 A razão deste género de restrição é, basicamente, a de que a semântica descritiva da menção parece ser, pelo menos no caso de termos singulares, bastante menos problemática do que a semântica descritiva do uso; ou, pelo menos, suscita problemas de natureza completamente diversa e que merecem assim um tratamento separado.

    Mencionadas estas ênfases e limitações, eis uma ilustração do nosso problema (Q), ao qual chamarei oficialmente Problema do Conteúdo Linguístico para expressões referenciais singulares, bem como para outras expressões subfrásicas e para frases completas que as contenham. Suponha-se que, de um modo sincero e afirmativo, eu digo o seguinte num certo contexto (por exemplo, ao dar a uma criança de sete anos uma explicação simples acerca dos tamanhos relativos dos planetas do sistema solar): Vénus é maior que Mercúrio. Supõe-se, naturalmente, que as expressões referenciais singulares (os nomes próprios) Vénus e Mercúrio são por mim empregues, no contexto visado, com a referência que lhes é aí convencionalmente atribuída, isto é, como meios de designar os planetas Vénus e Mercúrio; e não como meios de designar, por exemplo, os dois cocker spaniel do meu vizinho (os quais sucede terem precisamente aqueles nomes), ou um certo par de deuses do panteão romano. Qual é então o valor semântico dos nomes próprios? O que é que é contribuído pelos nomes próprios para o conteúdo semântico da minha elocução, ou seja, para aquilo que é literalmente dito ou afirmado por mim relativamente ao contexto em questão? E como é que deve ser concebido o significado ou o conteúdo semântico total da minha elocução no contexto? Entre outras coisas, o que é que é contribuído pelo material restante contido na frase, designadamente pela expressão relacional (ou predicado diádico) é maior que?

    1.9 Informação

    Alternativamente, e recorrendo a uma terminologia relativamente mais técnica já antes utilizada, o mesmo problema pode ser posto do seguinte modo. Qual é a contribuição dos nomes próprios para a identificação da proposição expressa pela minha elocução daquela frase declarativa portuguesa com respeito ao contexto? De um ponto de vista intuitivo, é natural pensar no conteúdo semântico da minha elocução como consistindo num certo fragmento de informação,24 no caso informação correcta, acerca de um determinado estado de coisas extra-linguístico. Qual é então o fragmento de informação literalmente transmitida pelo meu uso da frase Vénus é maior que Mercúrio no contexto?25 E qual é o papel dos nomes intervenientes na determinação dessa informação?

    Repare-se que, num certo sentido, é fácil especificar tal informação; e, portanto, o problema não é (só) esse. Trata-se simplesmente da informação que Vénus é maior do que Mercúrio; ou da proposição que Vénus é maior do que Mercúrio, se se quiser identificar o que é habitual fazer a informação estritamente contida num uso de uma frase com a proposição por ela literalmente expressa no contexto. Em muitos casos,26 se nos é dada uma frase declarativa S, então podemos especificar de forma canónica a proposição por ela literalmente expressa, ou a informação nela estritamente contida, da seguinte maneira. Basta prefixar a S o operador monádico27 A proposição que, e aquilo que obtemos é um termo singular complexo, A proposição que S, o qual descreve a proposição em questão. Assim, a proposição tipicamente expressa por um uso da frase portuguesa A neve é branca é simplesmente a proposição que a neve é branca; a proposição tipicamente expressa por um uso da frase portuguesa A Claudia Schiffer é boa é a proposição que a Claudia Schiffer é boa; e a proposição tipicamente expressa por um uso da frase inglesa The cat is on the mat é a proposição que o gato está no tapete.

    No entanto, isso não é dizer nada ou melhor, não é dizer muita coisa acerca das proposições expressas, acerca da natureza e identidade de tais proposições. Considere-se uma minha elocução num certo contexto, o qual pode ser o mesmo do que o atrás descrito, da frase A Estrela da Manhã é maior que Mercúrio, ou da frase O segundo planeta do sistema solar é maior que Mercúrio, ou ainda da frase Aquilo [aponto para Vénus] é maior que Mercúrio. São os fragmentos de informação contidos nestas frases, ou as proposições por elas expressas (relativamente aos contextos de uso), assimiláveis à informação que Vénus é maior que Mercúrio, ou à proposição que Vénus é maior que Mercúrio? Quantas proposições há aqui? Como é que se contam proposições deste género? Repare-se que as frases em questão apenas diferem umas das outras pelo facto de conterem, no mesmo ponto da sua estrutura interna, termos singulares distintos que possuem no entanto o mesmo valor referencial; com efeito, nome próprio, descrição definida singular, e pronome demonstrativo são todos empregues, nos contextos em questão, para referir o planeta Vénus. É a identidade das proposições expressas sensível apenas a essa constância de valor referencial? Ou será igualmente sensível à variação nos meios linguísticos empregues para as exprimir, ou nos ingredientes conceptuais envolvidos?

    1.10 Conteúdo Linguístico e Mental

    Voltemo-nos agora para a questão (2) da nossa lista inicial, o tópico do conteúdo mental. Começamos por reparar que um problema no mínimo análogo ao problema do conteúdo linguístico pode ser formulado, da maneira que abaixo se sugere, como um problema na filosofia da mente e do pensamento, um problema acerca do conteúdo semântico de uma diversidade de estados mentais ou psicológicos (os quais, por sinal, podem nunca vir a ter qualquer espécie de manifestação linguística ou verbal).

    Considere-se o estado ou o evento mental em que eu estou quando acredito, penso, ou julgo, que Vénus é maior que Mercúrio. Qual é o conteúdo, ou o significado, de tal estado ou evento mental, no sentido de aquilo que é acreditado, pensado, ou julgado? Ou então considere-se o estado ou o evento mental em que eu estou quando duvido que Vénus seja maior que Mercúrio, ou quando me pergunto se Vénus é maior que Mercúrio. Qual é o conteúdo, ou o significado, de tal estado ou evento mental, no sentido de aquilo que é duvidado, ou inquirido?28

    Podemos estar naturalmente inclinados a identificar o conteúdo semântico da minha crença de que Vénus é maior que Mercúrio com o conteúdo semântico a atribuir à minha elocução da frase portuguesa Vénus é maior que Mercúrio, e logo com a proposição por ela literalmente expressa, ou com a informação nela estritamente contida, relativamente ao contexto sob consideração. Deste modo, supondo que há aqui apenas uma dessas proposições, a proposição que Vénus é maior que Mercúrio serviria simultaneamente de conteúdo semântico linguístico, para a elocução, e de conteúdo semântico mental, para a crença; dito de outra maneira, a pretensão seria a de que essa proposição seria conjuntamente o significado do evento linguístico, da elocução, e o significado do evento mental, da crença.

    Se quisermos ser mais cuidadosos, ou mais sofisticados (ou ambas as coisas), podemos reformular aquela pretensão como sendo uma pretensão no sentido de uma identificação de proposições as quais, no entanto, se reconhece serem apresentadas de maneiras distintas ou vistas sob diferentes aspectos. Assim, a pretensão seria a de que a proposição que Vénus é maior que Mercúrio tomada enquanto conteúdo linguístico e a proposição que Vénus é maior que Mercúrio tomada enquanto conteúdo mental são afinal uma e a mesma proposição (diferentes aspectos ou maneiras de ver, mas uma única coisa). Reformulada desta maneira, a assimilação proposta de conteúdos ganharia o estatuto de uma identidade não trivial e informativa, do mesmo género do que a identificação da água com o composto químico H20 ou da identificação da Estrela da Manhã (Vénus vista ao amanhecer) com a Estrela da Tarde (Vénus vista ao entardecer).

    Se esta pretensão fosse correcta, então os nossos problemas (1) e (2) poderiam ser reduzidos a um único problema, muito embora este seja visto, em cada caso, a partir de um ângulo diferente. Ora, sucede que algumas considerações razoáveis podem ser, e têm sido, avançadas com vista a estabelecer a correcção de uma tal pretensão. Vejamos três desses argumentos.

    (1) Em primeiro lugar, repare-se que é justamente aquela frase portuguesa, a frase Vénus é maior que Mercúrio, que é utilizada para especificar o conteúdo da minha crença, como sendo a crença de que Vénus é maior que Mercúrio. E pode-se argumentar que tal facto está longe de ser uma mera coincidência. Com efeito, em circunstâncias normais, se eu quiser manifestar linguisticamente aquela crença, aquilo que faço na minha qualidade de falante nativo do português é simplesmente produzir uma elocução afirmativa da frase Vénus é maior que Mercúrio. Conversamente, em circunstâncias normais (de sinceridade, etc.), a produção por mim de uma tal elocução exprimirá automaticamente o estado mental em questão.

    (2) Em segundo lugar, argumenta-se que o conteúdo do meu estado mental e o conteúdo da minha elocução têm em comum propriedades semânticas importantes. E, embora da simples partilha de propriedades importantes por itens dados, não se siga de modo algum a sua identidade, o facto é considerado como extremamente sugestivo. Em especial, observe-se que tais conteúdos têm condições de verdade coincidentes: ambas as proposições são verdadeiras se, e somente se, o mesmo estado de coisas (ou a mesma situação) possível - Vénus ser maior que Mercúrio - se actualizar, um estado de coisas que é certamente extra-linguístico e independente da mente;29 e ambas as proposições são acerca dos mesmos objectos, os dois planetas, objectos igualmente extra-linguísticos e independentes da mente. Para além disso, crença e elocução herdam dos respectivos conteúdos a propriedade de terem um certo valor de verdade: tal como a minha crença é verdadeira em virtude de o seu conteúdo aquilo que é acreditado ser verdadeiro, também a minha elocução é verdadeira em virtude de o seu conteúdo aquilo que é dito ou afirmado ser verdadeiro.

    (3) Em terceiro lugar, argumenta-se que há inferências intuitivamente válidas que apenas podem ser reconhecidas como tal na base de uma identificação de conteúdo linguístico e conteúdo mental, na base de um discernimento de conteúdos que sejam comuns a actos linguísticos (elocuções) e a episódios mentais (crenças, pensamentos, juízos). Eis um exemplo de uma dessas inferências:

    1.      João acredita em tudo aquilo que Joana diz

          1. Joana disse o seguinte: "Há sereias na Praia do Meco"
          2. Logo, João acredita que há sereias na Praia do Meco

    Alega-se que a validade da inferência só pode ser acomodada através de uma identificação estrita do conteúdo da crença de João com o conteúdo da elocução de Joana.

    Dito isto, é no entanto necessário mencionar a existência de uma diferença importante entre, de um lado, a natureza da relação estabelecida entre o evento linguístico a elocução e o seu conteúdo semântico, e, do outro lado, a natureza da relação entre o evento mental a crença e o seu conteúdo semântico. Mas, antes de o fazer, introduzamos mais algumas noções importantes e úteis para fins ulteriores.

     

    1.11 A Relação de Significado

    Chamemos à relação entre uma elocução de uma frase e o seu conteúdo a relação de significado linguístico; os relata da relação são assim elocuções de frases (em contextos dados) e proposições. E chamemos à relação entre um estado ou evento mental e o seu conteúdo a relação de significado mental; os relata da relação são assim estados ou eventos mentais (e.g., crenças) e proposições.

    Ramificações importantes dos problemas do conteúdo linguístico e do conteúdo mental são então, respectivamente, as seguintes:

    (a)- o problema de explicar a natureza da relação de significado linguístico, ou seja, de explicar como é que elocuções/inscrições de frases têm os conteúdos semânticos que de facto têm, de explicar em virtude de que género de factores é que elas têm esses conteúdos;

    (b)- o problema de explicar a natureza da relação de significado mental, ou seja, de explicar como é que eventos/estados mentais intencionais têm os conteúdos semânticos que de facto têm, de explicar em virtude de que género de factores é que eles têm esses conteúdos.

    Uma ilustração do primeiro problema é a seguinte. É um facto que a minha elocução presente da frase O gato está deitado no tapete significa que o gato está deitado no tapete, exprime a proposição que o gato está no tapete, tem determinadas condições de verdade (é verdadeira se e só se o gato está deitado no tapete), etc. Como é que estes factos semânticos devem ser explicados? Uma ilustração do segundo problema é a seguinte. É um facto que o meu pensamento ocorrente de que o gato está deitado no tapete significa que o gato está deitado no tapete, tem como conteúdo a proposição que o gato está no tapete, tem determinadas condições de verdade (é verdadeiro se e só se o gato está deitado no tapete), etc. Como é que estes factos semânticos devem ser explicados? Naturalmente, supõe-se e esta suposição está longe de ser incontroversa que os factos semânticos envolvidos nas duas relações não são de todo factos brutos ou primitivos, irredutíveis a qualquer tipo de análise, mas são antes susceptíveis de uma explicação em termos de factos de outro género, em termos de factos de algum modo mais básicos; e a presunção comum a este respeito é a de que a semântica é necessariamente naturalizável, devendo tais factos mais básicos ser de alguma forma factos naturais (e.g., factos físicos, ou factos biológicos). Para além disso, argumenta-se em certos pontos de vista os quais parecem ser hoje preponderantes (embora não consensuais) que uma resposta para o problema (a) deve ser vista como parasitária em relação a uma resposta para o problema (b). A tese é a de que a noção de significado linguístico é, do ponto de vista da explicação, derivada com respeito à noção de significado mental. A ideia geral é a de que uma elocução/inscrição tem o conteúdo que tem porque é a expressão de um determinado estado/evento mental em que o falante está, o qual tem precisamente esse conteúdo; este género de redução pressupõe deste modo a identificação de conteúdo mental e conteúdo semântico. Naturalmente, se esta ideia à qual podemos chamar Tese da Prioridade Metodológica do Mental for plausível, então ficamos aqui com um único conjunto de factos por explicar, em vez de dois.

    Teremos a oportunidade de regressar mais adiante às ramificações (a) e (b) do problema do conteúdo. Por agora, interessa observar o seguinte, de modo a exibir a asimetria acima aludida entre as duas relações de significado: enquanto que a relação de significado linguístico é uma relação contingente, a relação de significado mental não o é.30 Vejamos como.

    Digamos que uma relação (binária) R é contingente ou não-rígida quando R se verifica de facto entre objectos x e y, mas o objecto x poderia não estar em R com o objecto y se as coisas fossem tornadas apropriadamente diferentes; ou seja, apesar de x estar em R com y, há uma situação possível na qual x e y não estão na relação R. Assim, um exemplo de uma relação contingente é dado na relação que se estabelece entre pessoas a e b quando, e somente quando, a é pai de b. Outro é a relação entre uma elocução e o seu conteúdo. Tal como as coisas são, a minha elocução da frase Vénus é maior que Mercúrio no contexto exprime, ou tem como conteúdo, a proposição que Vénus é maior que Mercúrio (seja esta o que for); mas, dada uma evolução apropriadamente diferente da língua portuguesa, a minha elocução poderia bem ter expresso uma proposição distinta, por exemplo a proposição que António Vitorino é mais alto que Pedro Abrunhosa, ou a proposição que 2 é maior que 5. Naturalmente, a contingência da relação entre a minha elocução e o seu conteúdo semântico é um caso particular do facto geral de as palavras e as expressões linguísticas estarem apenas arbitrariamente conectadas com aquilo que na realidade significam.

    Pelo contrário, a segunda relação, a relação de significado mental, é uma relação não-contingente ou rígida. Digamos que uma relação R é rígida quando, por um lado, R se verifica de facto entre objectos x e y, e, por outro, R não poderia deixar de se verificar entre esse objectos (por muito diferentes que as coisas fossem); ou seja, por um lado, x está em R com y, e, por outro, não há qualquer situação possível na qual x e y existam e não estejam na relação R. Assim, se Saul Kripke tem razão e a sua doutrina da necessidade da origem31 é correcta, então um exemplo admissível de relação rígida é dado na relação que se estabelece entre pessoas a e b quando, e somente quando, a é filho de b (no sentido biológico do termo). Outro é a relação entre um estado mental e o seu conteúdo. Recorrendo a um aparato terminológico proveniente da metafísica, pode-se dizer que a propriedade que a minha crença de que Vénus é maior que Mercúrio possui de ter como conteúdo a proposição que Vénus é maior que Mercúrio (seja esta o que for) é uma propriedade essencial e constitutiva da crença em questão, uma propriedade de cuja posse a existência e a identidade da crença dependem: esta deixaria de existir se não tivesse a propriedade, e deixaria de ser a crença que é se não tivesse a propriedade. Em geral, e em contraste com o caso linguístico, estados e eventos mentais com conteúdo semântico não estão contingentemente conectados com os conteúdos que de facto têm; e uma consequência disto é a de que, em contraste com o caso linguístico, estados e eventos mentais com conteúdo não estão contingentemente conectados com as condições de verdade que de facto têm.

    Em todo o caso, a diferença assinalada na natureza das relações de significado sob consideração entre os eventos, linguístico e mental, e os seus respectivos conteúdos, linguístico e mental não constitui por si só qualquer ameaça à identificação destes últimos e à fusão das proposições acima mencionadas. Note-se que, tal como uma e a mesma pessoa pode estar simultaneamente numa relação rígida com uma pessoa (e.g., a sua mãe) e numa relação não-rígida com outra (e.g., um filho seu), também uma e a mesma proposição pode estar simultaneamente numa relação rígida com um certo objecto (uma crença) e numa relação não-rígida com um objecto diferente (uma elocução).

     

    1.12 Fusão ou Dissociação?

    Todavia, a assimilação de conteúdo mental e conteúdo linguístico está longe de ser incontroversa; e os argumentos (1), (2) e (3) acima aduzidos a seu favor não são universalmente reconhecidos como conclusivos.

    De facto, é possível introduzir considerações prima facie plausíveis que militam a favor de uma separação entre as variedades de conteúdo, mental e linguístico, e de uma consequente distinção entre, por exemplo, a proposição que Vénus é maior que Mercúrio tomada enquanto significado linguístico e a proposição que Vénus é maior que Mercúrio tomada enquanto significado mental. A ideia não é a de que há aqui uma única proposição apresentada de maneiras distintas, como na teoria da fusão, mas sim a de que às maneiras distintas correspondem proposições numericamente distintas.

    Uma das considerações que pode ser utilizada para o efeito é aquela que consiste em discriminar entre tais tipos de conteúdo com base numa diferenciação das finalidades que eles são supostos servir, ou das funções que eles são supostos desempenhar. Assim, a noção de conteúdo linguístico é suposta servir basicamente os fins de uma teoria semântica para uma língua natural, uma teoria que interprete elocuções/inscrições de frases dessa linguagem (no sentido anteriormente mencionado de interpretação). Ora, tais fins podem não coincidir de todo com aqueles que são servidos pela noção de conteúdo mental, os quais são vistos como sendo basicamente os fins de uma teoria psicológica; uma teoria psicológica é aqui uma teoria que, entre outras coisas, explique certos comportamentos intencionais executados por agentes racionais em termos de certos estados e eventos mentais (crenças e desejos) em que tais agentes estão, sendo as explicações tipicamente feitas invocando os conteúdos atribuídos a esses estados e eventos mentais.

    Uma maneira habitual de discriminar nessa base entre os géneros de conteúdo em questão consiste em apelar para uma distinção entre duas variedades de conteúdo: conteúdo estrito e conteúdo lato.

    Casos em que, por assim dizer, se faz divergir o mundo mas se mantêm constantes os estados internos do sujeito ilustram bem a distinção entre conteúdos estritos e conteúdos latos. Considerem-se as seguintes situações. Situação A: Numa certa ocasião, está um copo de àgua a alguma distância de mim, eu penso Está ali um copo com água, tenho sede, quero beber água, levanto-me do sofá e caminho em direcção ao sítio onde o copo está. Situação B: Tudo é literalmente idêntico à situação A excepto no que respeita ao seguinte pormenor: em vez de o copo conter água, ele contém um líquido famoso ao qual Hilary Putnam chamou XYZ32, um líquido com todas as propriedades superficiais e fenomenológicas da água, mas que não é água em virtude de possuir uma composição química completamente diferente. A ideia de um conteúdo estrito é então introduzida como sendo aquilo que permanece invariante naquilo que eu penso o conteúdo do meu pensamento da situação A para a situação B. De facto, parece haver intuitivamente um sentido no qual eu tenho o mesmo pensamento, ou penso na mesma coisa, nas situações A e B, o sentido no qual o conteúdo dos meus pensamentos é visto como inteiramente determinado pelos meus estados internos; é esse tipo de conteúdo que é causalmente responsável pelo meu comportamento, o qual é ex hypothesi constante da primeira para a segunda situação. Digamos que o conteúdo estrito daquilo que eu penso nas duas situações é algo do género Está ali um copo com um líquido incolor, transparente, bebível, que tira a sede,. Por outro lado, a ideia de um conteúdo lato é introduzida como sendo aquilo que varia naquilo que eu penso o conteúdo do meu pensamento da situação A para a situação B. Parece haver também um sentido no qual eu tenho pensamentos diferentes, ou penso em coisas diferentes, nas situações A e B: o sentido no qual o conteúdo dos meus pensamentos é visto como determinado por aspectos do mundo exterior cuja diferença se reflecte numa diferença de condições de verdade. Note-se que o meu pensamento na primeira situação é verdadeiro (o líquido é de facto água), enquanto que tenho um pensamento falso na segunda situação (o líquido não é água): a noção de conteúdo aqui operativa, na qual conteúdos têm condições de verdade e valores de verdade determinados pelo mundo, é a noção de um conteúdo lato.

    A ideia é agora, grosso modo, a de que os conteúdos relevantes para efeitos de explicação psicológica, os conteúdos mentais, são apenas os conteúdos estritos: conteúdos internamente individualizáveis, cuja identidade e existência dependem apenas da existência do sujeito e da natureza dos seus estados internos, não dependendo nunca da identidade e existência de quaisquer objectos ou características do mundo. Enquanto que os conteúdos relevantes para efeitos de explicação semântica, os conteúdos linguísticos, podem muito bem ser os conteúdos latos: conteúdos externamente individualizáveis, conteúdos cuja identidade e existência dependem em geral da identidade e existência de objectos ou características do mundo. Para fins de explicação psicológica, interessa sobretudo a maneira como o agente representa o mundo, e não como o mundo de facto é; o conteúdo dos estados mentais deve ser, por conseguinte, estrito. Para fins de semântica descritiva, interessa sobretudo a maneira como o mundo de facto é, e não como o falante o representa; o conteúdo linguístico deve ser, por conseguinte, lato.33 Para estes fins, devemos invocar situações no mundo ou condições de verdade não conceptualizadas; para aqueles fins, devemos invocar conceptualizações de situações no mundo ou condições de verdade.

    Mas em que é que ficamos? Com a fusão ou com a dissociação de conteúdo linguístico e conteúdo mental? Penso que devemos ficar com a fusão. Note-se que daí não se segue, no entanto, qualquer rejeição da distinção conteúdo estrito/conteúdo lato tal como atrás delineada: esta distinção está perfeitamente em ordem e é uma distinção importante. Dois géneros de considerações a favor da fusão parecem ter bastante peso, embora não sejam definitivas (especialmente as primeiras). Em primeiro lugar, há o argumento da economia conceptual. Com efeito, no âmbito do tópico do conteúdo em geral, com a fusão ficariamos à partida com quatro problemas reduzidos a apenas três: o problema do conteúdo (linguístico-mental) e as suas duas ramificações acerca das relações de significado linguístico e de significado mental. Dada a diferença registada na natureza das relações de significado, estes últimos continuariam a ser problemas à primeira vista distintos. Todavia, existem pontos de vista nos quais é subscrita a tese que referimos como Tese da Prioridade Metodológica do Mental, nos quais é ensaiada uma redução do significado linguístico ao significado mental; se tais pontos de vista forem correctos, então as vantagens económicas da fusão são ainda maiores: ficariamos com apenas dois problemas para resolver (em vez de quatro). Em segundo lugar, há aquilo a que podemos chamar o argumento da combinação. Trata-se do argumento de que a validade de determinadas inferências, inferências onde atribuições de conteúdo mental se combinam com atribuições de conteúdo linguístico, bem como a verdade de determinadas generalizações, generalizações onde o mesmo género de combinação está presente, parecem exigir uma identidade estrita entre conteúdo linguístico e mental. Se assim for, é óbvio que os conteúdos linguísticos serão tão causalmente eficazes na produção do comportamento como os conteúdos mentais; se estes o são, aqueles também o são (pelo menos em alguns casos), o que milita contra a pretensão (subjacente à tese da dissociação) segundo a qual os conteúdos linguísticos são latos, inadequados para fins de explicação psicológica. O primeiro aspecto do argumento da combinação consiste apenas em reiterar considerações já feitas no parágrafo anterior. Tome-se o seguinte caso de inferência prática. Se a Maria diz ao telefone à Joana Vai começar a chover, a Joana acredita em tudo o que a Maria diz acerca do tempo, e a Joana quer sair de casa mas não se quer molhar, então ceteris paribus a Joana irá vestir a gabardine e buscar o guarda-chuva. Naturalmente, a Joana faz isto porque acredita que vai começar a chover, e acredita nisto porque acredita no que a Maria disse; este género de explicação daquilo que a Joana faz parece assim exigir que conteúdo da afirmação e conteúdo da crença sejam uma só coisa. Quanto ao segundo aspecto do argumento da combinação, considere-se a seguinte afirmação intuitivamente verdadeira: Há pessoas que acreditam por vezes no que dizem. A verdade desta afirmação poderia ser justificada com base no facto de ser uma generalização existencial de uma afirmação verdadeira como A Joana disse que as baleias são peixes, e acredita nisso. A forma lógica da generalização é algo como $ x $ y $ z [x diz y em z Ù x acredita em y em z], em que os valores das variáveis x, y, z são (respectivamente) pessoas, conteúdos, e ocasiões. Naturalmente, a verdade da quantificação existencial exige que os conteúdos que servem de valores para y sejam simultaneamente linguísticos, conteúdos de dizeres, e mentais, conteúdos de crenças.

    Penso que estes e outros argumentos similares a favor da fusão são procedentes. Inclino-me, por conseguinte, para a identidade estrita entre conteúdo proposicional linguístico e mental. Em todo o caso, a quem preferir permanecer céptico em relação a esses argumentos, poderiamos ainda dizer o seguinte. Questões no mínimo análogas às que se colocam em relação à fixação do conteúdo (linguístico) da minha elocução da frase Vénus é maior que Mercúrio podem colocar-se em relação à fixação do conteúdo (mental) da minha crença de que Vénus é maior que Mercúrio; se, para além da analogia, se trata na realidade de um e do mesmo tipo de questão, é algo sobre o qual podemos de momento suspender o juízo.

    1.13 Referência Linguística e Referência Mental

    Note-se agora que evento mental (crença) e evento linguístico (elocução), para além de poderem ser submetidos a questões análogas relativamente à fixação dos respectivos conteúdos proposicionais, podem ainda ser submetidos a questões análogas relativamente às suas relações respectivas com a realidade não-linguística e não-mental ou melhor, com segmentos apropriados dessa realidade.

    Parece ser um facto que algumas elocuções/inscrições são acerca de objectos particulares extra-linguísticos e representam situações ou estados de coisas extra-linguísticos; a minha elocução, por exemplo, é acerca do planeta Vénus, é acerca de Mercúrio, e representa o estado de coisas de Vénus ser maior que Mercúrio. Parece ser também um facto que alguns eventos/estados mentais são acerca de objectos particulares extra-mentais e representam estados de coisas extra-mentais; a minha crença, por exemplo, é acerca do planeta Vénus, é acerca de Mercúrio, e representa o estado de coisas de Vénus ser maior que Mercúrio. (Repare-se que uma diferença conspícua entre o caso do conteúdo e o caso da referência é a de que, neste, os objectos e as situações linguisticamente referidos ou descritos são manifestamente os objectos e as situações mentalmente referidos ou descritos.)

    Ainda que provisoriamente, chamemos referência linguística à relação que se verifica entre, de um lado, actos ou eventos linguísticos (a minha elocução), e, do outro, objectos particulares extra-linguísticos acerca dos quais eles sejam e estados de coisas extra-linguísticos que eles descrevam (Vénus, Mercúrio, Vénus ser maior que Mercúrio). E chamemos referência mental à relação que se verifica entre, de um lado, estados ou eventos mentais (a minha crença), e, do outro, objectos particulares extra-mentais acerca dos quais eles sejam e estados de coisas extra-mentais que eles descrevam (Vénus, Mercúrio, Vénus ser maior que Mercúrio).

    Ora, estas duas relações dão naturalmente origem a mais duas questões, as quais são as contrapartes para a província da referência das questões (a) e (b) para a província do significado e as quais nos dão, por razões abaixo indicadas, mais duas ramificações importantes do tópico genérico do conteúdo. Essas questões são as seguintes:

    (c)- o problema de explicar a natureza da relação de referência linguística, ou seja, de explicar como é que elocuções/inscrições de frases se referem aos objectos indivíduos, estados de coisas aos quais de facto se referem, de explicar em virtude de que género de factores é que têm as propriedades referenciais que têm;

    (d)- o problema de explicar a natureza da relação de referência mental, ou seja, de explicar como é que eventos/estados mentais intencionais se referem aos objectos indivíduos, estados de coisas aos quais de facto se referem, de explicar em virtude de que género de factores é que têm as propriedades referenciais que têm.

    (c) inclui o problema da determinação da referência linguística e (d) o problema da determinação da referência mental, problemas que caracterizaremos com mais detalhe na Secção 3.

    Não é surpreendente que considerações similares às que foram feitas em relação às conexões entre os problemas (a) e (b) possam igualmente ser feitas em relação às conexões entre os problemas (c) e (d). Em particular, é frequente supor-se também aqui que as propriedades semânticas envolvidas nas duas relações não são primitivas, mas são antes susceptíveis de uma explicação em termos de propriedades de outro tipo, propriedades de algum modo mais básicas; e, de novo, a presunção habitual a este respeito é a de que a semântica é também aqui naturalizável, devendo tais propriedades ser de alguma forma propriedades naturais (e.g., descritas no vocabulário da Física, ou da Biologia). Por outro lado, argumenta-se em certos pontos de vista os quais parecem ser hoje preponderantes (embora não consensuais) que uma resposta para o problema (c) deve ser vista como parasitária em relação a uma resposta para o problema (d). A tese é a de que a noção de referência linguística é, do ponto de vista da explicação, derivada com respeito à noção de referência mental. A ideia é aproximadamente a de que uma elocução/inscrição tem as propriedades referenciais que tem porque é a expressão de um determinado estado/evento mental, estado esse que tem precisamente essas propriedades. Naturalmente, se a tese da prioridade do mental for correcta, então, também aqui, ficaremos apenas com um problema a explicar (o problema (c)).

    Teremos a oportunidade de regressar mais adiante às ramificações (c) e (d) do problema do conteúdo. Mas um facto importante a registar desde já diz respeito a uma conexão que é possível estabelecer entre este par de questões e o par de questões (a) e (b). Com efeito, as duas relações de referência podem ser plausivelmente vistas como sendo determinadas, respectivamente, pelas relações anteriormente identificadas de significado linguístico e de significado mental. Alega-se para o efeito que a propriedade que alguns estados e eventos mentais têm de ser acerca de algo exterior à mente e de representar situações ou estados de coisas no mundo, a qual é tradicionalmente conhecida como Intencionalidade do mental, é argumentavelmente uma propriedade que os estados e eventos mentais em questão têm em virtude de terem os conteúdos ou significados que têm. A ideia é, por conseguinte, a de construir a relação de referência mental como sendo o produto relativo das seguintes duas relações: (I)- a relação de significado mental, a qual se verifica entre um estado mental e o seu conteúdo; e (II)- a relação que se verifica entre esse conteúdo, uma proposição, e os objectos particulares e o estado de coisas determinados por essa proposição. Assim, a minha crença de que Vénus é maior que Mercúrio é acerca de Vénus e representa a situação de Vénus ser maior que Mercúrio em virtude do facto de a proposição que é o seu conteúdo ser acerca de Vénus e representar a situação de Vénus ser maior que Mercúrio. Do mesmo modo, alega-se que a propriedade que alguns actos e eventos linguísticos têm de ser acerca de algo exterior à linguagem e de representar situações ou estados de coisas no mundo, é argumentavelmente uma propriedade que os actos e eventos linguísticos em questão têm em virtude de terem os conteúdos que têm. A ideia é, por conseguinte, a de que a relação de referência linguística é o produto relativo das seguintes duas relações: (I)- a relação de significado linguístico, a qual se verifica entre uma elocução/inscrição e o seu conteúdo; e (II)- a relação que se verifica entre esse conteúdo, uma proposição, e os objectos particulares e o estado de coisas determinados por essa proposição. Assim, a minha elocução da frase Vénus é maior que Mercúrio é acerca de Vénus e representa a situação de Vénus ser maior que Mercúrio porque a proposição que é o seu conteúdo é acerca de Vénus e representa a situação de Vénus ser maior que Mercúrio.

    Repare-se que argumentos deste género, aduzidos quer com respeito ao caso linguístico quer com respeito ao caso mental, dependem de uma premissa crucial que convém isolar: a tese de que conteúdos ou proposições que são acerca de objectos extra-linguísticos e extra-mentais indivíduos e estados de coisas no mundo têm a propriedade de determinar os objectos acerca dos quais são. Esta premissa não deixa de ser polémica, sobretudo se conteúdo e referência não forem identificados (como são em alguns pontos de vista) e se a relação de determinação for interpretada no sentido de satisfação (um conteúdo determina um objecto como referência se esse objecto é o objecto satisfaz o conjunto de condições incorporadas no conteúdo).

     

    1.14 Estrutura

    Um problema no mínimo similar ao problema do conteúdo linguístico singular, o problema da determinação do valor semântico para expressões referenciais singulares, surge naturalmente, do lado do mental, com respeito aos conteúdos de uma certa classe de estados e eventos psicológicos. Esse problema é o seguinte.

    (Q)** Como é que devem ser fixados os conteúdos daquelas crenças e pensamentos, bem como de outras variedades de estados ou eventos mentais, que podemos classificar como singulares, no sentido de serem acerca de indivíduos ou objectos particulares no mundo?34

    Por uma questão de conveniência de exposição, adoptemos provisoriamente duas suposições importantes, mas não incontroversas, acerca de conteúdos singulares. Primeiro, vamos supor que as proposições que servem de conteúdos para os estados mentais intencionais em questão, e também para as elocuções/inscrições associadas, possuem uma determinada estrutura interna; isto significa que tais conteúdos se deixam-se decompor em certas partes componentes, as quais são postas em conjunto de acordo com um certo modo de combinação. Por outras palavras, tal como o significado proposicional linguístico, o significado proposicional mental também é composicional. Segundo, supomos que a estrutura assim discernida nos conteúdos reflecte, pelo menos aproximadamente, a estrutura das frases que são canonicamente usadas para os especificar. Assim, supomos, por exemplo, que a estrutura do conteúdo da minha crença de que Vénus é maior que Mercúrio espelha aproximadamente a estrutura da frase empregue para a referir, a frase Vénus é maior que Mercúrio, tendo (no mínimo) partes correspondentes aos nomes Vénus, Mercúrio e uma parte correspondente ao predicado diádico é maior que.

    Qual é o rationale de tais suposições? Porque é que se deve discernir uma estrutura, ou seja, certas partes componentes articuladas de uma certa maneira, na proposição que Abrunhosa canta mal? E, em especial, porque é que se deve reconhecer nessa estrutura um ponto correspondente ao nome Abrunhosa? Eis duas razões.35

    Em primeiro lugar, porque a proposição tem determinados poderes inferenciais, os quais é razoável conceber como características intrínsecas da proposição. Por exemplo, ela é uma consequência lógica das proposições que o cantor de Se um dia eu fosse o teu olhar é Abrunhosa e que o cantor de Se um dia eu fosse o teu olha canta mal; e ela implica logicamente a proposição que alguém canta mal e a proposição que Abrunhosa canta. Ora, uma grande parte desses poderes inferenciais só pode ser explicada se uma estrutura daquele género for postulada.

    Em segundo lugar, porque a apreensão da proposição está sistematicamente conectada com a apreensão de uma certa classe de outras proposições; e uma grande parte dessas conexões sistemáticas só pode ser explicada se uma estrutura daquele género for postulada. Ilustrando, considere-se a minha apreensão da proposição que Abrunhosa canta mal: digamos que eu apreendo esta proposição em virtude de, por exemplo, acreditar nela. E considere-se a minha apreensão da proposição que Soares é fixe: digamos que eu apreendo esta proposição em virtude de, por exemplo, ter dúvidas acerca dela. Segue-se desses factos que eu estarei em posição de apreender a proposição que Abrunhosa é fixe, e de, por exemplo, rejeitá-la; e que eu estarei também em posição de apreender a proposição que Soares canta mal,e de, por exemplo, suspender o juízo acerca dela.

     

    1.15 Conteúdo Singular Mental

    Suponhamos que as observações precedentes são correctas. Supomos assim que a minha crença de que a Cláudia Schiffer é boa ou antes, o seu conteúdo tem uma determinada estrutura; e que tal estrutura contém um ponto correspondente ao nome próprio Cláudia Schiffer, o qual representa a Schiffer em carne e osso, e também um ponto correspondente ao predicado monádico é boa, o qual representa (digamos) a propriedade de ser boa.36

    O nosso problema acerca do conteúdo mental singular é então o seguinte. Como é que deve ser determinada aquela parte constituinte de um conteúdo mental que representa um indivíduo ou objecto particular? É o conteúdo da minha crença de que Vénus é maior que Mercúrio identificável com o conteúdo da minha crença de que a Estrela da Manhã é maior que Mercúrio, ou com o conteúdo da minha crença de que o segundo planeta do sistema solar é maior que Mercúrio, ou ainda com o conteúdo da minha crença de que aquilo (aponto para Vénus) é maior que Mercúrio? Acredito eu na mesma "coisa" em todos esses casos? Quantos conteúdos mentais há aqui? Como é que se contam conteúdos desse género? Note-se que todas aquelas crenças têm em comum o facto de serem crenças acerca daquilo que é, na realidade, o mesmo objecto material, viz. o planeta Vénus; e em todas elas a mesma propriedade relacional, viz. a propriedade de ser maior que Mercúrio, é predicada desse objecto material.

    E, dada a rigidez atrás constatada da relação entre um estado mental e o seu conteúdo, note-se ainda que é em geral legítimo inferir uma não-identidade entre estados ou eventos mentais particulares do mesmo tipo a partir de uma não-identidade entre os respectivos conteúdos; por exemplo, a minha crença de que a Estrela da Manhã é maior que Mercúrio e a minha crença de que a Estrela da Tarde é maior que Mercúrio serão elas próprias consideradas como crenças distintas se os seus conteúdos, respectivamente a proposição que a Estrela da Manhã é maior que Mercúrio e a proposição que a Estrela da Tarde é maior que Mercúrio, forem considerados como distintos.37

    Podemos chamar ao problema genérico exemplificado pelas questões acabadas de colocar Problema do Conteúdo Mental para crenças e pensamentos singulares, bem como para outros tipos de estados ou eventos mentais singulares, tais como desejos, juízos, dúvidas, etc. Dadas suposições como aquelas que foram acima adoptadas, são óbvias as afinidades existentes entre este problema e o problema do conteúdo semântico; e são igualmente óbvias as vantagens teóricas que resultam de um tratamento uniforme dos dois problemas, fazendo a filosofia da linguagem convergir com a filosofia da mente (e com a metafísica) na realização de uma tarefa explicativa comum.

    O tópico que queremos discutir neste ensaio, e acerca do qual uma concepção geral é proposta e defendida, é o tópico do conteúdo singular, linguístico e mental. Trata-se, de um lado, de uma questão na província da filosofia da linguagem e dos fundamentos da semântica, uma questão relativa ao funcionamento de certos dispositivos linguísticos de referência singular; e, do outro lado, de uma questão na província da filosofia da mente e da cognição, uma questão relativa à natureza e à identidade de crenças, pensamentos, etc., singulares. Como vimos, há também (no máximo) quatro tópicos importantes que são de algum modo adjacentes ao tópico do conteúdo: o da natureza da relação de significado linguístico, o da natureza da relação de significado mental, o da natureza da relação de referência linguística, e o da natureza da relação de referência mental. Mas, dado que o tratamento do primeiro par de questões pressupõe uma identificação prévia dos segundos relata das relações em questão, a qual é a tarefa básica de uma teoria do conteúdo, começamos naturalmente por fazer um mapa das principais posições teóricas na área. Quanto aos problemas relativos à referência, voltaremos a eles mais adiante.

     

     

    NOTAS

     

    1. Existem pelo menos duas noções de independência lógica ou conceptual entre problemas filosóficos. De acordo com uma delas, a noção mais forte, problemas dados são logicamente independentes quando nenhum deles é deduzível do outro, ou quando nenhum deles se deixa conceptualmente reduzir ao outro. Assim, quando problemas dados P e Q não são logicamente independentes um do outro neste sentido, é plausível dizer que há na realidade um único problema. De acordo com a outra noção de independência, a noção mais fraca, problemas dados são logicamente independentes quando não é o caso que uma solução para um deles seja deduzível de uma solução para o outro. Assim, quando problemas dados P e Q não são logicamente independentes um do outro neste sentido, não se segue que haja de facto um e um só problema: a dependência é consistente com o facto de P e Q serem distintos. A noção que se tem em mente no texto é a primeira.
    2. Algumas dessas conexões são discutidas mais adiante (ver Secção 4).
    3. Uso o termo indivíduo da maneira que é familiar em lógica, no sentido em que se diz, por exemplo, que o domínio de uma interpretação de uma linguagem de primeira ordem é um conjunto de indivíduos. Indivíduos são objectos de nível zero, por oposição a propriedades ou classes, os quais são objectos de nível igual ou superior a um; indivíduos (ou objectos particulares) caracterizam-se por não ter quaisquer elementos (no sentido da teoria dos conjuntos, e não no sentido da mereologia), e por não serem predicáveis do que quer que seja.
    4. Certas restrições e precisões relativamente à presente formulação do problema são introduzidas um pouco mais adiante.
    5. As expressões termo singular (habitual em lógica), expressão referencial singular (cunhada por Peter Strawson), e designador (usada por Saul Kripke) serão, ao longo deste livro, empregues como equivalentes (se bem que seja possível estabelecer entre elas certas distinções). Sumariamente, um termo singular é qualquer expressão de uma linguagem natural que possa ser usada por um falante com o propósito de seleccionar ou identificar um e um só item ou objecto particular; este género de caracterização é consistente com o facto de aquilo que é um termo singular poder ter usos em que não tem aquela função por exemplo, o sintagma nominal A baleia ocorre como termo singular na frase Achab lutou durante horas com a baleia , mas não ocorre como tal na frase A baleia é um mamífero. A inclusão de descrições definidas singulares na categoria dos designadores, apesar de bastante comum e de ser aqui provisoriamente assumida, é polémica.
    6. Uso os termos elocução e inscrição no sentido habitual de, respectivamente, palavras faladas e palavras escritas. Na verdade, os termos são ambíguos: ver Nota 16.
    7. Utilizo significado como contraparte portuguesa do termo inglês meaning; e reservo sentido para o termo inglês sense e para o alemão sinn tal como usados no contexto técnico de uma semântica Fregeana. Discuto alguns significados de significado mais à frente.
    8. Esta construção intuitiva da noção de conteúdo ou significado deve-se a David Kaplan e é aquela que será utilizada ao longo deste ensaio. Ver D. Kaplan, Demonstratives in J. Almog, J. Perry and H. Wettstein (eds), Themes from Kaplan, Oxford, Oxford University Press, 1988.
    9. Obviamente, contexto é aqui entendida no segundo dos sentidos atrás indicados.
    10. A ideia deixa-se captar pelo Princípio do Contexto desde que este seja tomado numa certa interpretação, designadamente como um princípio acerca acerca do significado ou conteúdo. Ver Gottlob Frege, Os Fundamentos da Aritmética, tradução portuguesa de António Zilhão, Lisboa, Imprensa Nacional, 1992, p. 34.
    11. Casos em que isso é aparentemente feito através de uma única palavra, por exemplo através da palavra Amanhã usada como resposta à pergunta Quando é que fazes anos?, não constituem contra-exemplos genuínos à pretensão; a palavra deve ser aí tomada como uma abreviatura conveniente de uma frase completa (Eu faço anos amanhã).
    12. A distinção tipo/espécimen é elucidada mais adiante.
    13. Ver o ensaio de Gareth Evans Semantic Theory and Tacit Knowledge, reimpresso nos seus Collected Papers, Oxford, Clarendon Press, 1985, 322-342 (em especial 326-328).
    14. Esta é a propriedade que uma linguagem possui quando a capacidade que os seus utentes têm de compreender ou usar certas frases está intrinsecamente conectada com a sua capacidade de compreender ou usar muitas outras frases. Um falante não pode estar em posição de compreender a frase O João detesta a Maria mas gosta da Joana sem compreender uma série de outras frases, por exemplo A Joana gosta da Maria mas detesta o João, A Maria detesta o João mas gosta da Joana, O João detesta a Joana mas gosta da Maria, etc. Ver Jerry Fodor, Why There Still Has to be a Language of Thought?´, in Psychosemantics, Cambridge, Mass., The MIT Press, 1988, 135-154.
    15. Stephen Schiffer tem sido o mais conhecido crítico da composicionalidade. Ver o seu livro The Remnants of Meaning, Cambridge, Mass., The MIT Press, 1987, Capítulos 7 e 8.
    16. As palavras elocução e inscrição são ambíguas, podendo a ambiguidade em questão ser descrita como uma ambiguidade acto/objecto. Com efeito, elas tanto podem ser vistas como sendo aplicadas aos actos linguísticos eles próprios o acto de proferir certos sons, o acto de inscrever certas marcas no papel como podem ser vistas como sendo aplicadas aos objectos resultantes da execução desses actos os sons proferidos, as marcas inscritas.
    17. Nesse caso, e dado que em geral classes não são universais mas particulares abstractos, tipos linguísticos não podem ser considerados como universais.
    18. Este género de formulação pode encontrar-se no recente ensaio de Robert Stalnaker Reference and Necessity, in Bob Hale and Crispin Wright (eds.), A Companion to the Philosophy of Language, Oxford, Basil Blackwell, 1997, 534-54.
    19. A partir de agora, o termo não-indexado significado é usado no sentido do termo indexado significado2, pelo menos se não houver qualquer indicação explícita em contrário.
    20. A designação é tomada de empréstimo a Robert Stalnaker. Ver Op. Cit., p. .
    21. Supondo que as primeiras, apesar de sintacticamente simples, não são logicamente complexas; e que as segundas, apesar de sintacticamente complexas, não são logicamente simples.
    22. Considerações simétricas às primeiras acima feitas, mas não às segundas, aplicam-se igualmente a termos gerais e outros predicados.
    23. Considerações simétricas a estas aplicam-se igualmente a termos gerais e outros predicados.
    24. Num certo sentido, não-técnico, do termo 'informação'. Em particular, este uso do termo deve ser liminarmente distinguido daquele que ocorre no âmbito da chamada teoria da informação.
    25. A qualificação introduzida pelo advérbio de modo é importante, uma vez que uma e a mesma elocução de uma frase num contexto dado pode igualmente exprimir outras proposições, ou transmitir outra informação, proposições e informação que não estão estritamente contidas na frase; por exemplo, aquela minha elocução poderia ser igualmente vista como transmitindo também a informação de que eu, o locutor, sou um falante da língua portuguesa, a informação de que há bandidos por perto, etc.
    26. Mas não em todos; considere-se, por exemplo, o caso de uma frase indexical como Eu tenho frio.
    27. Sintacticamente, trata-se de um operador que recebe uma frase como argumento e gera, como valor para esse argumento, um termo complexo.
    28. Naquilo que se segue, e por uma questão de conveniência, crenças e pensamentos são tomados como estados ou eventos mentais representativos ou paradigmáticos. Note-se que os termos crença e pensamento, bem como outros termos mentais, sofrem da chamada ambiguidade acto-objecto; assim, o termo pensamento pode ser interpretado de duas maneiras: (a) no sentido do acto ou evento de pensar; (b) no sentido do seu produto ou resultado, ou seja, aquilo que é pensado. Excepto nos casos em que há uma indicação explícita em sentido contrário, ou quando o contrário é sugerido pelo contexto, usarei os termos no sentido (a).
    29. A menos que queiramos subscrever alguma forma extrema e implausível de idealismo acerca do mundo exterior!
    30. Este facto milita de alguma maneira a favor da redução precedente, pois esta assumiria a forma de uma explicação de uma relação contingente em termos de uma relação não-contingente, o que parece ser plausível.
    31. Ver S. Kripke 1980, 110-113.
    32. H. Putnam, The Meaning of Meaning, reimpresso nos seus Philosophical Papers, Vol. 2: Mind and Language, Cambridge, Cambridge University Press, 1980.
    33. É bom notar que a dicotomia estrito/lato pode ser utilizada de uma maneira diferente e para propósitos diversos; ela é tipicamente usada no contexto das chamadas teorias duais do conteúdo mental, segundo as quais este tem sempre dois componentes, um estrito e o outro lato. As considerações acima delineadas com vista a dissociar tipos de conteúdo têm pouco a ver com o uso das noções em teorias duais.
    34. Estados ou eventos mentais singulares contrastam-se assim com estados ou eventos mentais gerais, os quais não são acerca de nenhum item em particular. Por exemplo, o estado em que eu estou quando, ameaçado por canibais numa ilha deserta, desejo que alguém venha em meu socorro não é um estado mental singular.
    35. Há outras razões, em especial aquelas que dizem respeito à infinitude e à produtividade (ou criatividade), propriedades que proposições partilham com as suas contrapartes linguísticas, frases. Obviamente, os argumentos para a composicionalidade do mental são decalcados dos argumentos atrás aduzidos para a composicionalidade da linguagem.
    36. Ou, se preferirmos, a classe das pessoas boas num sentido qualquer de boa diferente do moral, claro!
    37. A questão associada de saber se é igualmente legítima a transição conversa, designadamente a inferência para uma identidade de estados ou eventos mentais do mesmo tipo a partir de uma identidade dos respectivos conteúdos, é bem menos pacífica e será oportunamente considerada.

    José Nogueira Reis

    JNR