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Crítica Central de filosofia e cultura
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    Editoriais

    Crítica | Filosofia | Leitura | Música

    Crítica Central de filosofia e cultura
     Entrevistas Filosofia Leitura Música

    António Damásio António Damásio
    A consciência do corpo

    Desidério Murcho

    Depois de O Erro de Descartes, que constituiu um inesperado êxito no nosso país, o cientista António Damásio, radicado nos EUA, enfrenta um dos mais intrincados problemas da filosofia e das ciências da cognição: a consciência. É esse o tema do seu último livro, recentemente publicado nos EUA, onde foi entusiasticamente recebido pela comunidade académica, estando a ser traduzido para 17 línguas. A versão portuguesa acaba de sair na Europa-América e tem por título O Sentimento de Si: O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência. Fui falar com o autor.

    Que factores o conduziram ao problema da consciência?

    Para mim o problema da consciência foi sempre importante e interessante. Na altura em que estava a fazer a investigação que conduziu ao Erro de Descartes a questão que eu considerava mais vexante em matéria de ciência era o facto de ser difícil compreender no que dizia respeito especificamente às emoções como é que se sabe que se tem uma emoção. Há um capítulo no Erro de Descartes em que eu me refiro a esse problema, dizendo que julgo compreender como funcionam a emoções e que julgo compreender em parte como funciona o sentimento, do ponto de vista neurobiológico, mas não consigo compreender como é que sei que tenho uma emoção ou um sentimento. E esse parece-me ser um problema crítico.

    Assim, cheguei ao problema da consciência muito directamente porque não conseguia acabar de resolver os problemas que tinha com a emoção. Apesar de ter pensado durante muito tempo que nunca iria escrever sobre a consciência, por ser uma perda de tempo e por isso me fazer entrar em discussões que iriam criar controvérsia e que não resolveriam o problema, acabei por achar que era um desafio necessário. Já na altura do Erro de Descartes tinha muitas das ideias que apresento agora neste livro, mas não estavam tão amadurecidas. E na altura não discuti propositadamente muito mais o problema da consciência porque não queria distrair o leitor da questão principal que era o da relação entre a emoção e a decisão. Neste livro desenvolvo a ideia original de que as emoções fazem parte de um grande sistema de regulação biológica e que este sistema está intimamente ligado à emergência da consciência.

    Como vê as relações entre o seu trabalho científico e experimental e a filosofia, já que os problemas da mente-corpo e da consciência têm sido dos mais discutidos em filosofia?

    É uma relação extremamente estreita. Não há dúvida que grande parte da filosofia passou para a ciência. Isto é perfeitamente natural dado que o que a filosofia começou por ser é tudo aquilo que ainda hoje é, mas também tudo aquilo que a ciência hoje é.

    Em relação às ciências cognitivas, a todo o campo que hoje está incluído na neurociência ou na neurobiologia, a filosofia continua a ser essencial. Em primeiro lugar, para fazer a relação entre o que fazemos hoje em dia na ciência e o modo como as mesmas questões têm sido tratadas pela filosofia. Em segundo lugar, porque há problemas de relação geral entre cérebro, mente, biologia (no sentido geral), ciências sociais, cultura, física há uma complexidade cada vez maior porque todas as ciências continuam a produzir resultados. A filosofia vai ter o papel de ajudar a organizar o campo intelectual e ajudar a fazer a crítica da forma como as várias soluções são apresentadas. Não há, pois, qualquer risco de a filosofia desaparecer; vai continuar a ser necessária.

    Do seu ponto de vista, a consciência é um mecanismo biológico, fruto da evolução natural. Significa isto que a ideia tradicional e religiosa de uma alma incorpórea que de alguma maneira escapa às leis da natureza não passa afinal de uma quimera? Como é que vê exactamente as relações entre a mente e o corpo?

    Aquilo a que chamamos "mente" é uma colecção de processos biológicos. E, dado que estes processos são físicos, a mente é necessariamente um processo físico. Mas é preciso pensar que a física desses processos biológicos não é necessariamente a física corrente. Ter uma mente em funcionamento não é o mesmo do que ter um pedaço de mármore. Um dos grandes problemas que as pessoas têm é que quando pensam em matéria, quando pensam em qualquer coisa de físico, a imagem a que recorrem é a do cimento, da parede, da pedra, do pedaço de metal. E é evidente que o processo mental é um processo, note-se, um constante desenrolar de acontecimentos, e não uma coisa não pode ser concebido como esse tipo de matéria.

    Uma das coisas mais curiosas que está a acontecer é uma modificação da forma como os físicos concebem a matéria. A matéria não é apenas cimento e pedra, é também energia e fluxos. Assim, o nível de fenómeno biológico em que se desenrola a mente é de um nível físico que ainda está por definir completamente. O que lhe posso dizer é que tenho a convicção que há uma matéria do pensar, da mente consciente, matéria essa que é biológica e altamente complexa, que está ligada ao funcionamento de redes nervosas e que permite a própria perspectiva da primeira pessoa e que nada tem a ver com a nossa concepção da matéria e dos objectos de pedra e cal e aço que temos à nossa volta.

    A sua teoria parece refutar alguns argumentos filosóficos anti-fisicalistas que se apoiam na ideia de que os qualia e a perspectiva da primeira pessoa são insusceptíveis de serem cientificamente tratados.

    Esses pontos de vista têm a ver com um período diferente do desenvolvimento da neurociência. Claro que há imensas pessoas tanto da neurociência como da filosofia que concordariam com esses argumentos. Mas nos capítulos do meu livro em que falo da experiência mental da neurocientista Mary ["What Mary Didnt Know", de Frank Jackson], pode ver como este exemplo não funciona. Há um erro de lógica na experiência mental de Mary. A ideia de Mary poder saber tudo quanto é possível saber sobre a biologia da cor e de mesmo assim não ser capaz de ter experiência da cor é perfeitamente coerente; a experiência da cor depende de um outro tipo de conhecimento, de outro tipo de fenómeno biológico que nada tem a ver com o nosso conhecimento externo como cientistas e como filósofos daquilo que é a neurobiologia da cor. O argumento da Mary é muito curioso porque algumas pessoas que concordavam com ele passaram a achar que está errado, depois de terem lido o meu livro. É simpático ver que as coisas mudam, que as pessoas podem aceitar a mudança de opinião.

    Julgo que tudo depende da perspectiva. Como pode ver no meu livro, respeito a perspectiva interior. Não há dúvida que a nossa mente e que a consciência são fenómenos privados e internos. Isto é perfeitamente compatível com uma ligação entre esses fenómenos de primeira pessoa e os fenómenos de terceira pessoa que decorrem da nossa observação de comportamentos. O que é preciso é manter uma visão dupla dos fenómenos aquilo que é interior e aquilo que é exterior. Mas o facto é que eles estão ligados. Tudo aquilo que você tem do ponto de vista interior e que não é revelável ou visível para mim tem uma tradução, por vezes extremamente subtil, em fenómenos visíveis na perspectiva da terceira pessoa. Alguns desses fenómenos são comportamentais, outros podem revelar-se na análise de fenómenos que podemos fazer com um scanner ou um electroencefalograma. Tudo isso são manifestações de uma outra coisa; mas não são essa coisa. Como digo várias vezes no livro, olhar para o electroencefalograma de uma pessoa que está a pensar um determinado pensamento é diferente de olhar para esse pensamento. Não podemos olhar para o pensamento, mas podemos olhar para uma manifestação que está correlacionada com ele. O grande desafio da ciência actual é fazer esta triangulação entre certos índices de funcionamento biológico, de certos comportamentos visíveis exteriormente, e essa outra coisa que é a primeira pessoa, que é a nossa própria experiência.

    Um dos dogmas de alguma da filosofia do século XX tem sido a ideia de que sem linguagem não há pensamento. Esta ideia parece também decisivamente refutada por alguns resultados experimentais apresentados no seu livro.

    Exactamente. E, sobretudo, a ideia de que a consciência é uma consequência da linguagem parece-me estar completamente errada e há neste momento, entre os dados experimentais e a reflexão sobre esses dados, razões para a esquecer rapidamente. O que não há dúvida é que os níveis mais elevados de consciência, aquilo a que chamo "consciência alargada", necessitam de linguagem. Mas mesmo assim estou convencido de que há seres não humanos com consciência alargada que não têm qualquer linguagem e que organizam a consciência de uma forma não verbal.

    É compreensível que as pessoas tenham pensado que a linguagem é necessária para a consciência. Apesar de a linguagem ser um dos processos mais complexos a nível biológico é evidentemente um grande fenómeno de comunicação, o que nos faz sentir que quase tudo tenha de passar pela linguagem porque nós usamos a linguagem para chegar aos pontos mais altos do nosso raciocínio e da nossa criatividade. Veja aliás como é irónico que a neurociência tenha começado exactamente pela linguagem. A neurociência começou pelo estudo da relação entre o cérebro e a linguagem. Isto é espantoso. A neurociência não começou por estudar fenómenos simples, não começou pelos neurónios; quase que se pode dizer que começou pelo ponto mais alto, que são os fenómenos da linguagem. Isso deu a ideia falsa de que tudo provinha da linguagem.

    Outro exemplo desta curiosa distorção, de que também falo no livro é a seguinte: quando se pensa na marcha do conhecimento é óbvio que sabemos muito mais sobre a consciência moral, do ponto de vista biológico, filosófico e das ciências sociais, do que sobre a consciência cognitiva. Curiosamente, o nosso conhecimento marcha muitas vezes no sentido menos previsível. Começamos por compreender coisas muito, muito complexas e depois, a pouco e pouco, vamos chegando às coisas mais escondidas, que são também complexas, mas que são ao mesmo tempo mais simples.

    Um dos aspectos que me impressionou no seu livro, do ponto de vista humano, é o facto de se notar a compaixão que sente por alguns dos doentes com que trabalha. É para si por vezes difícil lidar com alguns destes dramas humanos?

    É extremamente difícil e não é preciso ser especialmente "simpático", no verdadeiro sentido do termo, para sentir compaixão por estes doentes. Basta apenas pensar em nós próprios se estivéssemos na mesma situação. É extremamente difícil ver um músico exímio, por exemplo, que perdeu a capacidade de processamento auditivo ou um pintor que perdeu a capacidade de utilizar a cor ou, mais simplesmente, uma pessoa que nos parece extremamente agradável e inteligente, que tinha uma vida feliz e que perdeu alguns aspectos da memória ou da linguagem. A única palavra possível para descrever isto é dizer que são situações horrorosas para a pessoa e para os que estão à sua volta. É extremamente difícil lidar com isto. E esta é uma das razões pelas quais é importante estudar estes problemas.

    Claro que há a razão a que chamo "aristotélica", a curiosidade humana, que para mim é mais do que suficiente. Se alguém me dissesse que não havia qualquer valor prático no trabalho que nós fazemos eu teria mesmo assim imenso gosto em fazer esse trabalho. O que é curioso é que há um valor prático. Quanto mais nós soubermos sobre a maneira como o cérebro produz certos fenómenos complexos da mente mais nos vai ser possível delinear programas de reabilitação. Há várias consequências práticas no nosso conhecimento que vale a pena sublinhar e que justificam o esforço e o tornam ainda mais valioso.

    A área das ciências da cognição tem sido extremamente frutuosa e estimulante nos últimos anos. Tem alguma palavra especial para estudantes portugueses que estejam interessados nessa área?

    Acho que é a melhor área para trabalhar neste momento. O que se está a passar nas ciências cognitivas, com a sua ligação à neurobiologia, é semelhante ao que se passou nos anos 60 e 70 com o desenvolvimento da biologia molecular. Trata-se de penetrar num conjunto de fenómenos extremamente complexos graças a várias descobertas. No caso da biologia molecular foi a descoberta da estrutura do ADN e a descoberta do código genético. Uma vez feitas essas descobertas abriu-se todo um novo campo, tanto de técnicas como de teorias e de possível entendimento.

    O mesmo está a acontecer agora nas ciências cognitivas. Começou-se por um entendimento a nível molecular e celular de redes nervosas; e, agora, a possibilidade de termos scanners para estudar os fenómenos a nível dos sistemas está a desenvolver-se de uma forma extraordinária. Não tenho qualquer dúvida que nas duas próximas décadas o progresso será ainda maior. Portanto, quem trabalha nas ciências cognitivas está no lugar certo. As pessoas que quiserem compreender os grandes temas da filosofia e das humanidades podem perfeitamente fazê-lo nas ciências cognitivas. É uma actividade maravilhosa.

    Desidério Murcho
    Texto publicado no suplemento Livros do jornal O Independente (Junho de 2000)


    Crítica | Filosofia | Leitura | Música

     
    Luís Vaz de Camões
     
     
     

    Babel e Sião
     
    Sôbolos rios que vão 
    Por Babilônia, me achei, 
    Onde sentado chorei 
    As lembranças de Sião 
    E quanto nela passei. 

    Ali, o rio corrente 
    De meus olhos foi manado; 
    E, tudo bem comparado, 
    Babilônia ao mal presente, 
    Sião ao tempo passado. 

    Ali, lembranças contentes 
    Na alma se representaram; 
    E minhas cousas ausentes 
    Se fizeram tão presentes 
    Como se nunca passaram. 

    Ali, depois de acordado, 
    Co rosto banhado em água, 
    Deste sonho imaginado, 
    Vi que todo o bem passado 
    Não é gosto, mas é mágoa. 

    E vi que todos os danos 
    Se causavam das mudanças 
    e as mudanças dos anos; 
    Onde vi quantos enganos 
    Faz o tempo às esperanças. 

    Ali vi o maior bem 
    Quão pouco espaço que dura; 
    O mal que depressa vem, 
    E quão triste estado tem  
    Quem se fia da ventura. 

    Vi aquilo que mais vale, 
    Que então se entende milhor, 
    Quando mais perdido for; 
    Vi ao bem suceder mal 
    E, ao mal, muito pior. 

    E vi com muito trabalho 
    Comprar arrependimento; 
    Vi nenhum contentamento, 
    E vejo-me a mim, que espalho 
    Tristes palavras ao vento. 

    Bem são rios estas águas 
    Com que banho este papel; 
    Bem parece ser cruel 
    Variedade de mágoas 
    E confusão de Babel. 

    Como homem que, por exemplo, 
    Dos transes em que se achou, 
    Despois que a guerra deixou, 
    Pelas paredes do templo 
    Suas armas pendurou: 

    Assim, depois que assentei 
    Que tudo o tempo gastava, 
    Da tristeza que tomei, 
    Nos salgueiros pendurei 
    Os órgãos com que cantava. 

    Aquele instrumento ledo 
    Deixei da vida passada, 
    Dizendo: Música amada, 
    Deixo-vos neste arvoredo, 
    À memória consagrada. 

    Frauta minha que, tangendo, 
    Os montes fazíeis vir 
    Pra onde estáveis correndo, 
    E as águas, que iam descendo, 
    Tornavam logo a subir, 

    Jamais vos não ouvirão 
    Os tigres, que se amansavam; 
    E as ovelhas que pastavam, 
    Das ervas se fartarão 
    Que por vos ouvir deixavam. 

    Já não fareis docemente 
    Em rosa tornar abrolhos 
    Na ribeira florescente; 
    Nem poreis freio à corrente, 
    E mais se for dos meus olhos. 

    Não movereis a espessura, 
    Nem podereis já trazer 
    Atrás de vós a fonte pura, 
    Pois não pudestes mover 
    Desconcertos da ventura. 

    Ficareis oferecida 
    À Fama, que sempre vela, 
    Frauta de mim tão querida; 
    Porque, mudando-se a vida, 
    Se mudam os gostos dela. 

    Acha a tenra mocidade 
    Prazeres acomodados, 
    E logo a maior idade 
    Já sente por pouquidade 
    Aqueles gostos passados. 

    Um gosto que hoje se alcança, 
    Amanhã já o não vejo: 
    Assim nos traz a mudança 
    De esperança em esperança 
    E de desejo em desejo. 

    Mas, em vida tão escassa, 
    Que esperança será forte? 
    Fraqueza de humana sorte, 
    Que quanto da vida passa 
    Está recitando a morte! 

    Mas deixar nesta espessura 
    O canto da mocidade! 
    Não cuide a gente futura 
    Que será obra da idade 
    O que é força da ventura. 

    Que idade, tempo, o espanto 
    De ver quão ligeiro passe, 
    Nunca em mim puderam tanto, 
    Que, posto que deixe o canto,  
    A causa dele deixasse. 

    Mas em tristezas e nojos, 
    Em gosto e contentamento, 
    Por sol, por neve, por vento, 
    Tendré presente á los ojos  
    Por quien muero tan contento 
     

    Órgãos e frauta deixava, 
    Despojo meu tão querido, 
    No salgueiro que ali estava, 
    Que pera troféu ficava 
    De quem me tinha vencido. 

    Mas lembranças da afeição 
    Que ali cativo me tinha, 
    Me perguntaram então: 
    Que era da música minha 
    Que eu cantava em Sião? 
    Que foi daquele cantar 
    Das gentes tão celebrado? 
    Porque o deixava de usar? 
    Pois sempre ajuda a passar 
    Qualquer trabalho passado. 

    Canta o caminhante ledo 
    No caminho trabalhoso, 
    Por entre o espesso arvoredo; 
    E de noite o temeroso, 
    Cantando, refreia o medo. 

    Canta o preso docemente, 
    Os duros grilhões tocando; 
    Canta o segador contente, 
    E o trabalhador, cantando, 
    O trabalho menos sente. 

    Eu, que estas cousas senti 
    Na alma, de mágoas tão cheia, 
    Como dirá, respondi, 
    Quem alheio está de si 
    Doce canto em terra alheia? 

    Como poderá cantar 
    Quem em choro banha o peito? 
    Porque, se quem trabalhar 
    Canta por menos cansar, 
    Eu só descansos enjeito. 

    Que não parece razão 
    Nem parece cousa idônea, 
    Por abrandar a paixão, 
    Que cantasse em Babilônia 
    As cantigas de Sião. 
     

    Que, quando a muita graveza 
    De saudade quebrante 
    Esta vital fortaleza, 
    Antes moura de tristeza  
    Que, por abrandá-la, cante. 

    Que, se o fino pensamento 
    Só na tristeza consiste, 
    Não tenho medo ao tormento: 
    Que morrer de puro triste, 
    Que maior contentamento? 

    Nem na frauta cantarei 
    O que passo e passei já, 
    Nem menos o escreverei; 
    Porque a pena cansará 
    E eu não descansarei. 

    Que, se a vida tão pequena 
    Se acrescenta em terra estranha, 
    E se Amor assim o ordena, 
    Razão é que canse a pena 
    De escrever pena tamanha. 

    Porém se, pera assentar 
    O que sente o coração, 
    A pena já me cansar, 
    Não canse pera voar 
    A memória em Sião. 

    Terra bem-aventurada, 
    Se, por algum movimento, 
    Da alma me fores mudada, 
    Minha pena seja dada 
    A perpétuo esquecimento. 

    A pena deste desterro, 
    Que eu mais desejo esculpida 
    Em pedra ou em duro ferro, 
    Essa nunca seja ouvida, 
    Em castigo do meu erro. 

    E se eu cantar quiser, 
    Em Babilônia sujeito, 
    Hierusalém, sem te ver, 
    A voz, quando a mover, 
    Se me congele no peito. 

    A minha língua se apegue 
    Às fauces, pois te perdi, 
    Se, enquanto viver assi, 
    Houver tempo em que te negue 
    Ou que me esqueça de ti! 

    Mas, ó tu, terra de Glória, 
    Se eu nunca vi tua essência, 
    Como me lembras na ausência? 
    Não me lembras na memória, 
    Senão na reminiscência. 

    Que a alma é tábua rasa 
    Que com a escrita doutrina 
    Celeste tanto imagina, 
    Que voa da própria casa 
    E sobe à Pátria divina. 

    Não é logo a saudade 
    Das terras onde nasceu 
    A carne, mas é do Céu, 
    Daquela santa Cidade 
    De onde esta alma descendeu. 

    E aquela humana figura, 
    Que cá me pôde alterar, 
    Não é quem se há-de buscar: 
    É o raio da Fermosura 
    Que só se deve de amar. 

    Que os olhos e a luz que ateia 
    O fogo que cá sujeita, 
    Não do sol, mas da candeia  
    É sombra daquela idéia 
    Que em Deus está mais perfeita. 

    E os que cá me cativaram 
    São poderosos afeitos 
    Que os corações têm sujeitos; 
    Sofistas que me ensinaram 
    Maus caminhos por direitos. 

    Destes o mando tirano 
    Me obriga, com desatino, 
    A cantar, ao som do dano, 
    Cantares de amor profano 
    Por versos de amor divino. 

    Mas eu, lustrado co santo 
    Raio, na terra de dor, 
    De confusão e de espanto, 
    Como hei-de cantar o canto 
    Que só se deve ao Senhor? 

    Tanto pode o benefício 
    Da Graça, que dá saúde, 
    Que ordena que a vida mude: 
    E o que eu tomei por vício 
    Me faz grau pera a virtude. 

    E faz que este natural 
    Amor, que tanto se preza, 
    Suba da sombra ao real, 
    Da particular beleza 
    Pera a Beleza geral. 

    Fique logo pendurada 
    A frauta com que tangi, 
    Ó Hierusalém sagrada, 
    E tome a lira dourada 
    Pera só cantar de ti; 

    Não cativo e ferrolhado 
    Na Babilônia infernal, 
    Mas dos vícios desatado 
    E cá desta a ti levado, 
    Pátria minha natural. 

    E se eu mais der a cerviz 
    A mundanos acidentes, 
    Duros, tiranos e urgentes, 
    Risque-se quanto já fiz 
    Do grão livro dos viventes. 

    E, tomando já na mão 
    A lira santa e capaz 
    Doutra mais alta invenção, 
    Cale-se esta confusão, 
    Cante-se a visão da paz! 

    Ouça-me o pastor e o rei, 
    Retumbe este acento santo, 
    Mova-se no mudo espanto; 
    Que do que já mal cantei 
    A palinódia já canto. 

    A vós só me quero ir, 
    Senhor e grão Capitão 
    Da alta torre de Sião, 
    À qual não posso subir, 
    Se me vós não dais a mão. 

    No grão dia singular 
    Que na lira o douto som 
    Hierusalém celebrar, 
    Lembrai-vos de castigas 
    Os ruins filhos de Edom. 

    Aqueles que tintos vão 
    No pobre sangue inocente, 
    Soberbos co poder vão, 
    Arrasai-os igualmente, 
    Conheçam que humanos são. 

    E aquele poder tão duro 
    Dos afeitos com que venho, 
    Que incendem a alma e engenho; 
    Que já me entraram o muro 
    Do livre alvídrio que tenho; 

    Estes, que tão furiosos 
    Gritando vêm a escalar-me, 
    Maus espíritos danosos,  
    Que querem como forçosos 
    Do alicerce derrubar-me, 

    Derrubai-os, fiquem sós, 
    De forças fracos, imbeles; 
    Porque não podemos nós 
    Nem com eles ir a Vós, 
    Nem sem Vós tirar-nos deles. 

    Não basta minha fraqueza 
    Pera me dar defensão, 
    Se Vós, santo Capitão, 
    Nesta minha fortaleza 
    Não puserdes guarnição. 

    E tu, ó carne que encantas, 
    Filha de Babel tão feia, 
    Toda de misérias cheia, 
    Que mil vezes te levantas 
    Contra quem te senhoreia, 

    Beato só pode ser 
    Quem com a ajuda celeste 
    Contra ti prevalecer, 
    E te vier a fazer 
    O mal que lhe tu fizeste; 

    Quem com disciplina crua 
    Se fere mais que uma vez, 
    Cuja alma, de vícios nua, 
    Faz nódoas na carne sua, 
    Que já a carne na alma fez 

    E beato quem tomar  
    Seus pensamentos recentes 
    E em nascendo os afogar, 
    Por não virem a parar 
    Em vícios graves e urgentes; 

    Quem com eles logo der 
    Na pedra do furor santo 
    E, batendo, os desfizer 
    Na Pedra, que veio a ser 
    Enfim cabeça do Canto; 

    Quem logo, quando imagina 
    Nos vícios da carne má, 
    Os pensamentos declina 
    Àquela carne divina 
    Que na Cruz esteve já; 

    Quem do vil contentamento 
    Cá deste mundo visível, 
    Quanto ao homem for possível, 
    Passar logo o entendimento 
    Pera o mundo inteligível, 

    Ali achará alegria 
    Em tudo perfeita e cheia 
    De tão suave harmonia, 
    Que nem, por pouca, escasseia, 
    Nem, por sobeja, enfastia. 

    Ali verá tão profundo 
    Mistério na suma Alteza, 
    Que, vencida a Natureza, 
    Os mores faustos do Mundo 
    Julgue por maior baixeza. 

    Ó tu, divino aposento, 
    Minha Pátria singular, 
    Se só com te imaginar 
    Tanto sobe o entendimento, 
    Que fará, se em ti se achar? 

    Ditoso de quem se partir 
    Pera ti, terra excelente, 
    Tão justo e tão penitente, 
    Que, despois de a ti subir, 
    Lá descanse eternamente! 
     
     

     Leia o Salmo (136) que inspirou o poema 
     
     
      Remetente : Paulo Torquato Tasso

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