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José Leon Machado: ensaios

A casa por fabricar: uma leitura do poema «Andaime» de Fernando Pessoa

1. Fala-se de Fernando Pessoa como se fala de um nosso amigo próximo. Anda na boca de toda a gente: desde os simples empregados de escritório até aos políticos que o citam nos seus discursos parlamentares ou nos comícios partidários. É pau para toda a colher. Pintam-no nas paredes e nos postes eléctricos, pelas ruas, vêm fotos nos jornais, fazem-se programas de rádio e televisão, usam-no até para vender máquinas de escrever.

Porém, este conhecimento, este andar de boca em boca é superficial. Poucos sabem realmente quem foi Fernando Pessoa, poucos lêem e compreendem a sua obra. Ele próprio passara a existência a tentar descobrir quem vivia dentro de si, que significado haveria por detrás dos seus pensamentos. A pergunta «quem não sou?» é posta ao longo de toda a sua obra.

É nossa pretensão neste estudo definir algumas fronteiras de Pessoa ortónimo, servindo-nos de um dos seus poemas menos «badalados»: "O Andaime". Sabemos que o devaneio lírico e a musicalidade caracterizam a forma de ser poeta na perspectiva ortónima. A dificuldade maior será abrir sendas pela imensidade florestal que é toda a obra poética deste grande da nossa literatura. Ele é tudo e em todos os heterónimos há afinidades, semelhanças que, no fundo, o tornam único.

É característico de Pessoa ortónimo a abundância de aliterações e de rimas internas. A linguagem é sóbria e intimista. A nível temático, a maior parte das composições que constituem o Cancioneiro, chora uma felicidade passada, para lá da infância. A inquietação metafísica perpassa por cada verso, bem medido, longe do caudal impetuoso e aparentemente desgovernado de Álvaro de Campos.

É isso que tentaremos verificar no poema "O Andaime", publicado na revista Presença em Junho de 1931.

2. Fernando Pessoa intitulou o poema de "O Andaime", aparecendo a mesma palavra na última estrofe da composição. Andaime é um vocábulo de origem árabe que os dicionários descrevem como uma armação de madeira ou ferro de que se servem os pedreiros para construir um edifício, sendo desmontada após a construção. É também utilizado para restauro de paredes de edifícios arruinados. Porquê o andaime nesta composição? Diz António Quadros que há sempre na poesia de Pessoa «um trilho para as alturas, uma temática de levitação para além de tudo» (Quadros, 1987: 62). Palavras como sol, sobe e o próprio andaime são disso testemunhas no poema em análise.

O andaime é um meio de fazer erguer, para elevar às alturas, as paredes de uma casa. No poema, a casa é a vida do poeta. Contrapõe-se a altura do sol e do andaime à planura do rio e do mar. a «casa por fabricar» é o que nunca chegou a ser; o andaime as esperanças irrealizáveis, o projecto inconcluso, a ilusão que se revelou numa mentira. O andaime, afinal, não serviu para construir a casa; era inútil como a vida e seus anseios.

A casa, na simbologia geral, é o centro do mundo e significa o ser interior, o refúgio íntimo de cada homem. Nesta composição, o poeta sente-se vazio, pois a casa não chegou a ser edificada. O seu interior, a sua alma, é um vácuo enorme rodeado por um andaime inútil.

Fernando Pessoa tem uma imaginação aquática por excelência. É quase obsessivo o tema da água na sua obra. Lembremo-nos das odes de Álvaro de Campos, um engenheiro naval, e da Mensagem. No poema em análise temos o rio, as ondas, as águas lentas e mansas, o mar.

O rio, como escoamento das águas, é símbolo de fertilidade, de morte e de renovação. A corrente é a vida; a água descendo para o oceano e o ajuntamento das águas o retorno à indiferenciação (cf. Chevalier, 1982: 449). O poeta recorda o seu passado olhando as ondas do rio. Elas lembram-lhe a vida «vivida em vão». O «correr vazio» do rio é como a própria vida. O poeta está na margem sossegado e não encontra nenhuma razão para explicar o seu sossego. Antes pelo contrário, deveria estar agitado, inconformado com aquilo em que se tornou. Olha com indiferença as ondas, ouvindo o «som morto das águas». Tudo passa, tudo vai, como a corrente do rio. A velha ideia heraclitiana está aqui bem presente. No fragmento 12 da edição de Diels, diz Heraclito: «ceux qui entrent dans les mêsmes fleuves reçoivent le courant d'autres et d'autres eaux et les âmes s'exhalent des substance humides».

As ondas indicam uma ruptura com a vida habitual, uma mudança nas ideias, atitudes, nos comportamentos do sujeito (Chevalier, 1982: 450). O poeta de "O Andaime" descreve-as tão leves que nem são «ondas sequer». O corte entre o passado e a tomada de consciência no presente é radical. Todo o seu passado foi um grande erro, um engano colossal.

As águas lentas e mansas remetem-nos para a obra de Bachelard, L'Eau et les Rêves. Diz Bachelard que a água leva «au loin, l'eau passe comme les jours» (Bachelard: 125). «Elle este une substance pleine de réminiscenses et de rêveries divinatrices» (Ibidem: 122). É a mestra da linguagem fluida, da linguagem sem choques, contínua, da linguagem que abranda o ritmo, que transforma em matéria uniforme os ritmos diferentes (cf. Ibidem: 250). Paul Claudel dizia que tudo o que o coração deseja se pode reduzir à figura da água.

As águas calmas e lentas simbolizam o desejo da morte: «pour certaines âmes, l'eau tient vraiment la mort dans sa substance. Elle comunique une rêverie où l'horreur est lente et tranquile» (Bachelard: 122; cf. Ibidem: 66). As águas mansas funcionam como um convite à morte. Para Heraclito, a morte era a própria água. É expressivo o uso do adjectivo morto no poema de Pessoa, associado ao som das águas e ao eu do poeta.

O mar é símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a ele regressa. Aí se nasce e aí se morre. É a encarnação da Grande Mãe, de que fala Gilbert Durand. O poeta pede às ondas que o levem «Para o olvido do mar». É o desejo do retorno ao seio materno, à indiferenciação. Só o mar é remédio, só as suas águas o podem envolver no esquecimento.

O complexo de Caronte, assim designado por Bachelard, parece reflectir-se neste poema de Fernando Pessoa. O apelo que o poeta faz às ondas para que o levem, lembra um outro de Baudelaire em Les Fleures du Mal: «O mort, vieux capitaine, il est temps! Levons l'ancre!» Tudo o que de lento há na morte é marcado pela figura do barqueiro horrível. As ondas, o rio que corre, são o caminho de Caronte a transportar a alma do poeta para o mar alto, o túmulo do «olvido». O rio não é o objectivo, mas o meio para alcançar a paz plena do mar e do indefinido.

Na Teogonia de Hesíodo, a água doce estagnada dos rios e a água fecunda e furiosa do oceano antagonizam-se. a paz que o poeta deseja não é o marasmo, a inércia que sobre si se abate quando olha o rio preguiçoso. É a paz espumante do oceano, larga e abrupta numa eterna aventura desigual e única. Talvez do mar renasça um novo ser e a vida recomece, menos ilusória, menos enganadora.

Sabemos que o sonho é um veículo de criação de símbolos. Fernando Pessoa é um sonhador. Ele próprio o diz: «Toda a minha vida foi de passividade e de sonho».

O cepticismo pela vida real transforma-se, no poema "O Andaime", num cepticismo pela vida de sonho. O poeta encara o passado como um sonho vão. Nada do que sonhara se realizou, a sua vida foi uma inteira desilusão. O estado natural do poeta era o sonho. Como a realidade era dolorosa, efémera, rotineira, refugiava-se na fantasia. O alívio, diz João Mendes, procurava-o «no sonho, não só como evasão da vida angustiada e sem solução; mas porque de facto o sonho se torna mais verdadeiro que a realidade concreta» (Mendes, 1983: 287). Porém, em "O Andaime", o poeta descobre que também o sonho é enganador e absurdo. A vida e o sonho são ambos sonhos. Nada é útil para resolver o conflito interior. Resta a morte, o «olvido». A futilidade da vida consciente e o absurdo do inconsciente obrigam o poeta a preferir o seio do mar.

A infância é símbolo da inocência e da simplicidade, o estado anterior ao erro. A saudade do tempo de criança é uma constante que atravessa toda a obra de Fernando Pessoa. Sabemos que até aos seis anos ele fora exclusivamente o «menino de sua mãe» e que, a partir daí, tivera de repartir com os seus irmãos recém-chegados essa exclusividade. Tal evento «repercutiu-se-lhe profundamente na alma, tornando-se uma criança e depois um jovem ensimesmado, solitário, introspectivo, melancólico, que procurou sucessivos escapes para a situação ressentida como de abandono e dupla orfandade» (Quadros, 1987: 24). Também no poema "O Andaime" parece delinear-se esta problemática, implicitamente no desejo de retorno ao seio materno atrás explicitado, e na alusão à «bola de criança». Na quintilha terceira, o poeta compara a sua esperança e o seu desejo a uma bola. A bola atirada por uma criança ao alto sobe mais do que a esperança que sente, do que o desejo que tem. As crianças são solícitas. Ele, ao contrário, é morno, quase frio, impotente de vontade. Talvez quando criança fosse mais perseverante nos seus desejos e esperanças.

As recordações afluem-lhe à memória com a correnteza fluvial. Mas essa correnteza leva, juntamente com as esperanças, os sonhos irrealizáveis. O poeta está de mãos vazios perante o rio que corre. Ressalta um sentimento de fatalidade angustiante, «de fracasso metafísico, de queda de um sonho anterior» (Quadros, 1987: 56). As esperanças estão mortas porque já não acredita nelas; mas hão-de morrer porque ainda não as esqueceu. O poeta sente-se um morto, como cadáver que deu à margem do rio.

Mantinha-o uma visão irreal, impossível: «Só no palco era rainha / Despiu-se e o reino acabou». Ele encontrou-se, «Quando estava já perdido». É como chegar atrasado a um encontro que não foi marcado. Tal como um louco, teimava no que não tinha solução. A sensação de loucura é própria de alguém que choca com a realidade e que não a aceita ou a compreende de uma forma desviante. Agora cai em si e vê o engano. Apenas um sonho liga o seu pensamento ao corpo: ser muro de jardim.

A simbologia do muro e do jardim tem a sua importância para a compreensão do poema. O muro simboliza a comunicação cortada, interrompida. Pode servir para defesa, protecção, mas é ao mesmo tempo símbolo de cárcere. O jardim simboliza o paraíso terrestre, celeste ou cósmico. Aparece nos sonhos como a expressão de um desejo puro. O muro de jardim mantém as forças internas que florescem. Não se penetra no jardim senão por uma porta estreita (Cf. Chevalier, 1982: 531-533). Contudo, o poeta fala de um «deserto jardim». Não tem árvores nem canteiros de flores. Está deserto como a sua própria alma. Deste modo, o paraíso que o jardim simboliza torna-se o vazio, a ausência da felicidade; o muro o corte, o impedimento de realizar o sonhado. O corpo do poeta é o muro da alma, o guardião, a defesa do que já nada há para guardar. O jardim é a sua alma árida e deserta, sem sonhos, sem vida, sem passado, sem futuro.

3. A intertextualidade é, como a considera Bakhtine, descobrir num texto outras vozes escondidas. É a presença polifónica de várias vozes num texto literário. Formulado este conceito por Julia Kristeva nos anos 60, já Baudelaire, no século XIX, se referira implicitamente a ele. Baudelaire considerava o cérebro humano como sendo constituído por camadas que se inter-relacionam. Do mesmo modo um texto literário é contituído por camadas, externas ou internas ao escritor, que se inter-relacionam (Silva, 1986: 624 e seguintes).

Há vários tipos de intertextualidade. Os que nos interessam para a busca de analogias no poema "O Andaime" são a hetero-autoral, que é a relação de um texto literário com textos de outros escritores; e a homo-autoral. Nesta, o autor espelha a sua própria obra.

A intertextualidade pressupõe sempre outros textos. Procuraremos sugerir, nos próximos parágrafos, a possível analogia de "O Andaime" com vários textos do mesmo autor e de outros autores.

Se compararmos esta composição com a "Sôbolos Rios" de Camões, deparamos com uma afinidade na forma estrófica, métrica e rítmica. A afinidade do vocabulário e de certa temática parece-nos igualmente similar. Expressões em "Sôbolos Rios" como lembranças, tempo passado, rio corrente, sonho imaginado, Quantos enganos / Faz o tempo às esperanças, um gosto que hoje se alcança, desejo em desejo, por sol, por neves, mal presente, são rios estas águas e a morte indicam uma franca analogia com o poema de Fernando Pessoa.

Camões adapta o que diz o salmo 136, Super Flumina Babylonis, à sua própria vida. No salmo, os judeus, «desterrados na Babilónia, choram o tempo em que viveram felizes na sua terra (Saraiva, 1980: 100). Assim, o poeta, na margem do rio, chora o tempo passado e o seu mal presente. Reconhece, contudo, que o que passou não lhe dá contentamento nenhum. Ficou-lhe apenas a lembrança de uma esperança perdida. Aquilo que ele pensava ser um grande bem é apenas desilusão. A luz, a resolução da crise, vem-lhe do amor e da misericórdia divina, da Jerusalém celeste.

Fernando Pessoa, da mesma forma, olha as águas correntes e nelas revê os enganos da sua vida passada. Todavia, não resolve o conflito interior por uma saída escatológica, tal como em Camões. A sua única saída é o «olvido do mar», o deixar-se arrastar pelas águas, sem desejos, sem esperanças, ansiando apenas o esquecimento, o aniquilamento total.

Este é um dos exemplos mais característicos da intertextualidade hetero-autoral. Cremos que Fernando Pessoa, conscientemente ou não, foi influenciado pelo texto de "Sôbolos Rios" no momento em que compunha o poema "O Andaime".

Da intertextualidade homo-autoral há inúmeros exemplos, tanto no Fernando Pessoa ortónimo como no heterónimo. Centrar-nos-emos no ortónimo.

Entre 1928 e 1933 Fernando Pessoa compôs pelo menos cinco poemas tendo a paisagem fluvial como cenário. Um deles é "O Andaime". A identidade vocabular e simbólica entre este e, por exemplo "Na Ribeira deste Rio" e "Bóiam Leves" é flagrante. No primeiro, o poeta passa os dias junto ao rio, olha-o, vê «os rastros que ele traz» e o «que ficou para trás». Vê e medita, não no rio que passa, mas no que vai pensando. Na segunda composição, as águas paradas absorvem a imaginação do poeta. Os seus pensamentos de mágoa «bóiam leves», como Ofélia morta. «São coisas vestindo nadas», «vestígios do que não foi».

No poema sem data "Na Quinta entre Ciprestes", o devir heraclitiano está também presente: «No rio ao pé dos salgueiros / Passam as águas em vão». Trazem consigo tristezas de outras gentes que, juntas com as do poeta, aumentam o seu caudal.

Em 1933 escreve "Entre o Sono e o Sonho". O poeta, neste poema, diz que entre si e aquilo que supõe ser «corre um rio». Esse rio é o passado, a vida que foi: «Chegou onde hoje habito / A casa que hoje sou». O passado dormente morre no rio que desliza.

4. Abordámos no nosso estudo alguns pontos que nos parecem importantes para uma maior clarividência de um dos poemas que consideramos fundamental para o entendimento da poética de Fernando Pessoa. Longe dos moldes modernistas, o poema "O Andaime" ressente-se de certa atmosfera simbolista. Da abordagem simbólica e temática, concluímos da presença no poeta de um cepticismo perante a vida real e de sonho, ambas enganadoras e fúteis, e do desejo da morte. A longa composição de Camões "Sôbolos Rios" não terá sido de todo estranha a Fernando Pessoa quando da construção de "O Andaime", uma vez que há ressaibos análogos em ambos os poemas. A temática do rio que corre como vida que passa em retrospectiva é uma recorrência em muitas das composições poéticas da obra ortónima de Fernando Pessoa.

Fernando Pessoa não é um poeta apenas para ser falado. A fama corrompe e a moda passa. Saber ler Pessoa é descobrir os seus dramas e, por ele, tentar compreende os nossos. Foi um homem vulgar, correspondente comercial de firmas medíocres. Porém, soube olhar para dentro de si, para a rua onde passava, o quarto onde dormia, o mar que se fixava no horizonte, e descobriu o para lá: «Vi todas as coisas e maravilhei-me de tudo / Mas tudo sobrou ou foi pouco».


BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston (19--), L'Eau et les Rêves, 6ª ed., Paris, Librairie José Corti.

CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT (1982), Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont.

MENDES, João (1983), Literatura Portuguesa IV, 2ª ed., Lisboa, Editorial Verbo.

PESSOA, Fernando (1958), Poesias, 5ª ed., Lisboa, Edições Ática (daqui se extraiu o poema "O Andaime", pp. 232-234).

QUADROS, António (1987), «Introdução à Vida e Obra Poética de Fernando Pessoa», em Poemas de Alberto Caeiro, Mem Martins, Publicações Europa-América.

SARAIVA, António José (1980), Luís de Camões, 3ª ed., Amadora, Livraria Bertrand.

SILVA, Aguiar Vítor Manuel de (1986), Teoria da Literatura, 7ª ed., Coimbra, Livraria Almedina.

José Leon Machado, 1991

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Fernando Pessoa

Cartas de amor


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1

Ophelinha:

Para me mostrar o seu desprezo, ou pelo menos, a sua indifferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da serie de "razões" tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-m'o. Assim, entendo da mesma maneira, mas dõe-me mais.

Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem quizer: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.

Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros como réus que é preciso "entalar".

Porque não  é franca para commigo? Que empenho tem em fazer soffrer quem não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante a propria vida isolada e triste, e não precisa de que lh'a venham accrescentar creando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe affeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.

Reconheço que tudo isto é comico, e que a parte mais comica d'isto tudo sou eu.

Eu-proprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra cousa que não fosse no soffrimento que tem prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amál-a, o tenha merecido, e creio bem qeu amál-a não é razão bastante para o merecer. Enfim...

Ahi fica o "documento escripto" que me pede. Reconhece a minha assignatura o tabellião Eugenio Silva.

1.3.1920.

Fernando Pessoa

pp. 48-49

3

19.2.1920

 ás 4 da madrugada

Meu amorzinho, meu Bébé querido:

São cerca de 4 horas da madrugada e acabo, apezar de ter todo o corpo dorido e a pedir repouso, de desistir definitivamente de dormir. Ha trez noites que isto me acontece, mas a noite de hoje, então, foi das mais horriveis que tenho passado em minha vida. Felizmente para ti, amorzinho, não podes imaginar. Não era só a angina, com a obrigação estupida de cuspir de dois em dois minutos, que me tirava o somno. É que, sem ter febre, eu tinha delirio, sentia-me endoidecer, tinha vontade de gritar, de gemer em voz alta, de mil cousas disparatadas. E tudo isto não só por influencia directa do mal estar que vem da doença, mas porque estive todo o dia de hontem arreliado com cousas, que se estão atrazando, relativas á vinda da minha família, e ainda por cima recebi, por intermedio de meu primo, que aqui veio ás 7 1/2, uma serie de noticias desagradaveis, que não vale a pena contar aqui, pois, felizmente, meu amor, te não dizem de modo algum respeito.

Depois, estar doente exactamente numa occasião em que tenho tanta cousa urgente a fazer, tanta cousa que não posso delegar em outras pessoas.

Vês, meu Bébé adorado, qual o estado de espirito em que tenho vivido estes dias, estes dois ultimos dias sobretudo? E não imaginas as saudades doidas, as saudades constantes que de ti tenho tido. Cada vez a tua ausencia, ainda que seja só de um dia para o outro, me abate; quanto mais hão havia eu de sentir o não te ver, meu amor, ha quasi três dias!

Diz-me uma cousa, amorzinho: Porque é que te mostras tão abatida e tão profundamente triste na tua segunda carta - a que mandaste hontem pelo Osorio? Comprehendo que estivesses tambem com saudades; mas tu mostras-te de um nervosismo, de uma tristeza, de um abatimento tães, que me doeu immenso ler a tua cartinha e ver o que soffrias. O que te aconteceu, amôr, além de estarmos separados? Houve qualquer cousa peor que te acontecesse? Porque fallas num tom tão desesperado do meu amor, como que duvidando d'elle, quando não tens para isso razão nenhuma?

Estou inteiramente só - pode dizer-se; pois aqui a gente da casa, que realmente me tem tratado muito bem, é em todo o caso de cerimonia, e só me vem trazer caldo, leite ou qualquer remedio durante o dia; não me faz, nem era de esperar, companhia nenhuma. E então a esta hora da noite parece-me que estou num deserto; estou com sêde e não tenho quem me dê qualquer cousa a tomar; estou meio-doido com o isolamento em que me sinto e nem tenho quem ao menos vele um pouco aqui enquanto eu tentasse dormir.

Estou cheio de frio, vou estender-me na cama para fingir que repouso. Não sei quando te mandarei esta carta ou se acrescentarei ainda mais alguma cousa.

Ai, meu amor, meu Bébé, minha bonequinha, quem te tivesse aqui! Muitos, muitos, muitos, muitos, muitos beijos do teu, sempre teu

Fernando

pp. 51-53

7

23/3/1920

Meu querido Be«be»sinho,

Hoje, com a quasi certeza que o Osorio não te poderá encontrar, pois, além de ter que esperar aqui pelo Valladas, tem naturalmente que ir levar assucar a casa de meu primo, quasi que de nada me serve escrever-te. Vão, em todo o caso, estas linhas, para o caso de sempre ser possivel fazer te chegar a carta ás mãos.

Ainda bem que a interrupção de ainda agora foi mesmo no fim da nossa conversa, quando iamos despedir-nos. Era justamente para evitar interrupções d'essas que eu escolhi o caminho por onde hoje iamos. Amanhã esperarei à mesma hora, sim Bébé? Não me conformo com a idéa de escrever; queria fallar-te, ter-te sempre ao pé de mim, não ser necessário mandar-te cartas. As cartas são signais de separação - signais, pelo menos, pela necessidade de as escrevermos, de que estamos affastados.

Não te admires de certo laconismo nas minhas cartas. As cartas são para as pessoas a quém não interessa mais fallar: para essas escrevo de boa vontade. A minha mãe, por exemplo, nunca escrevi de boa vontade, exactemente porque gosto muito d'ella.

Quero que sintas isto, que saibas que eu sinto e penso assim a este respeito, para não me achares secco, frio, indifferente. Eu não o sou, meu Bébé-menininho, minha almofadinha côr-de-rosa para pregar beijos (que grande disparate!)

Mando um meiguinho chinez.

E adeus até amanhã, meu anjo.

Um quarteirão de milhares de beijos do teu, sempre teu

Fernando

O Osorio leva o chinez dentro de uma caixa de phosphoros.

pp. 65-66

16

Meu Be«be»zinho lindo:

Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (Alvaro de Campos).

Tenho estado muito triste, e além d'isso muito cansado - triste não só por te não poder ver, como tambem pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, habil d'essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espirito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu propria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado...

Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais docil, mais meiga, mais amoravel.

Enfim...

Amanhã passo  á mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer á janella?

Sempre e muito teu

Fernando

27/4/1920

33

Domingo 15.8.1920

Vibora:

Recebi a tua carta má, e, na verdade, não percebo como foi que nos não encontrámos nem hontem nem antes de hontem. Differença de relogios? Não creio, porque não notei, quer num dia quer noutro, ao chegar á Baixa, que o meu relogio estivesse tão errado.

Escrevo-te só estas linhas para te dizer que estarei amanhã ao meio-dia em ponto no fim da Av. das Cortes. Vães ao escriptorio da R. da Victoria á 1. Isto deve dar-te tempo. O peor é se vães acompanhada. Em todo o caso esperar-te-hei até ás 12 1/4.

Oxalá estejas melhor; mas isso não é desgosto, é viboridade, ou seja maldade.

Sempre e muito teu

Fernando

Estou escrevendo do Café Arcada ao meio dia e 3 quartos. Porisso escrevo pouco (contra o meu costume) para ver se passo na tua rua não muito longe da uma hora.

p. 125 36

Ophelinha:

Agradeço a sua carta. Ella trouxe-me pena e allivio ao mesmo tempo. Pena, porque estas cousas fazem sempre pena; allivio, porque, na verdade, a unica solução  é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amisade inalteravel. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?

Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se attribuissem.

O Tempo, que envelhece as faces e os cabellos, envelhece tambem, mas mais depressa ainda, as affeições violentas. A maioria da gente, porque é estupida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contrahiu o habito de se sentir a amar. Se assim não fosse, naão havia gente feliz no mundo. As creaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade d'essa illusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por elle a estima, ou a gratidão, que elle deixou.

Estas cousas fazem soffrer, mas o soffrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão de passar o amor e a dor, e todas as mais cousas, que não são mais que partes da vida?

Na sua carta é injusta para commigo, mas comprehendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com magua, mas a maioria da gente - homens ou mulheres - escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio optimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.

Quanto a mim...

O amor passou. Mas conservo-lhe uma affeição inalteravel, e não esquecerei nunca - nunca, creia - nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequeneina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua indole amoravel. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe attribúo, fossem uma illusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lh'as attribuisse.

Não sei o que quer que lhe devolva - cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memoria viva de uma passado morto, como todos os passados; como alguma cousa de commovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos annos é par do progresso na infelicidade e na desillusão.

Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infancia, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras affeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memoria profunda do seu amor antigo e inutil

Que isto de "outras affeiçõpes" e de "outros caminhos" é consigo, Ophelinha, e não commigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existencia a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais á obediência a Mestres que não permittem nem perdoam.

Não é necessario que comprehenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.

Fernando

29/XI/1920

Cartas de Amor de Fernando Pessoa, Organização, posfácio e notas de David Mourão-Ferreira, Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz, Edições Ática, Lisboa 1978, pp. 131-133 Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz


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"Não evoluo, viajo"

FERNANDO PESSOA

(Fernando Pessoa, Obra Poética, Rio de Janeiro, Editora José Aguilar, Ltda., 1960)

 

 

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Outra biografia de Fernando Pessoa

Eu e os outros dele - escrito de Helena Faria Monteiro

O amigo - poema de Carlos Queiroz a Fernando Pessoa

Fernando Pessoa - o Poeta Português - por José de Almada Negreiros

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A célebre arca dos escritos de Fernando Pessoa

 

 

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